Fantasmas do Passado

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Na manhã seguinte, Clara acordou com o som suave da chaleira apitando na cozinha. Por um breve momento, sentiu-se como se tivesse voltado no tempo, quando a casa era cheia de vida e risadas. Mas, ao abrir os olhos e se deparar com o silêncio, lembrou-se da realidade. A casa estava vazia, exceto por ela e sua mãe, que ainda dormia no quarto ao lado.

Clara se levantou, tentando afastar o peso das lembranças que o reencontro com Lucas havia trazido. Ela se vestiu rapidamente e foi até a cozinha. O cheiro de chá de ervas inundava o ambiente, e sua mãe, sentada à mesa, parecia frágil, envolta em um cobertor, com os olhos cansados e um sorriso melancólico no rosto.

— Bom dia, querida — disse Dona Teresa com a voz fraca, mas cheia de carinho.

— Bom dia, mãe — Clara respondeu, se aproximando para lhe dar um beijo na testa. — Como você está se sentindo hoje?

— Ah, já estive melhor, mas não vamos perder tempo falando de mim. Quero saber de você. Como foi sua noite? Conseguiu descansar?

Clara hesitou por um momento. Ela não queria preocupar sua mãe com as turbulências internas que estava enfrentando. Sabia que precisava ser forte por ela.

— Consegui sim. Estava cansada da viagem — respondeu, sem mencionar nada sobre Lucas.

— Sei que deve ser estranho estar de volta depois de tanto tempo. A cidade mudou um pouco, não é? — disse Dona Teresa, tomando um gole do chá. Seus olhos pareciam analisar Clara com cuidado.

Clara sorriu de leve, olhando pela janela da cozinha, onde o jardim abandonado continuava a ser uma lembrança do tempo que havia passado.

— Sim, mudou. Mas, ao mesmo tempo, tudo parece tão familiar. É como se nada realmente tivesse mudado, sabe? — Clara disse, pensativa. Mas o que ela não mencionou era que o que mais parecia igual era o sentimento de inquietude em seu peito. E Lucas.

— Você o viu, não viu? — A pergunta de sua mãe veio como uma onda inesperada, e Clara a encarou surpresa.

— Como... como você sabe?

Dona Teresa soltou uma risada baixa, quase uma tosse.

— Querida, eu posso estar doente, mas ainda sei das coisas. Lucas passou por aqui algumas vezes nos últimos meses. Ele me ajudou com algumas coisas na casa. Sei que é difícil, mas talvez isso seja uma oportunidade para vocês resolverem o que ficou pendente.

Clara sentiu um nó se formar na garganta. Sua mãe sempre soubera o quanto Lucas significava para ela, mas também entendia o motivo pelo qual haviam se afastado. O assunto sempre fora delicado, e Clara nunca se sentiu confortável em trazer à tona o que havia acontecido.

— Mãe, eu não sei se estamos prontos para isso. Nem eu, nem ele. O que tivemos foi... complicado — Clara disse, sua voz embargando um pouco.

— As coisas mais importantes da vida geralmente são complicadas, Clara. Mas isso não significa que devam ser ignoradas. Vocês dois têm um passado e, pelo que vejo, ainda têm um futuro, se quiserem. Mas isso só vocês podem decidir.

Clara sabia que sua mãe tinha razão, mas ainda assim, o medo de reviver a dor de sua separação de Lucas a consumia. O que eles tiveram foi intenso, verdadeiro, mas também cheio de mágoas. E agora, depois de tantos anos, ela não tinha certeza de como lidar com tudo isso.

— Vou pensar nisso, mãe. Mas, por agora, meu foco é você — disse Clara, tentando desviar o assunto, embora soubesse que o tema ainda a perseguiria.

Passaram o resto da manhã juntas, conversando sobre coisas leves, mas Clara não conseguia tirar Lucas de sua mente. As palavras de sua mãe ecoavam em sua cabeça. "Um futuro, se quiserem". Mas Clara não tinha certeza se ainda havia algo que pudesse ser salvo entre eles.

Mais tarde, Clara decidiu sair para dar uma volta, tentando espairecer e organizar seus pensamentos. Caminhar pelas ruas da cidade a ajudava a pensar, e ela sempre amou observar as mudanças sutis que aconteciam com o passar do tempo. As pessoas que agora viviam ali, as lojas diferentes, mas a essência do lugar ainda era a mesma. A praça central, onde ela e Lucas passavam horas conversando, ainda estava ali, com o mesmo carrossel enferrujado no centro.

Ela parou em frente ao carrossel, observando as cadeiras giratórias vazias, balançando levemente com o vento. Por um instante, se lembrou de uma noite específica, anos atrás, quando ela e Lucas haviam escapado de uma festa chata para irem à praça, e passaram a madrugada inteira ali, rindo, conversando e sonhando com o futuro.

"Sonhos", pensou Clara. "Onde eles foram parar?"

— Eu sabia que te encontraria aqui.

A voz, tão familiar, a tirou de seus pensamentos. Ela se virou lentamente e lá estava ele, novamente. Lucas, com as mãos nos bolsos e o semblante mais suave do que na noite anterior. Havia algo de diferente naquele momento, algo menos carregado de tensão.

— O que você está fazendo aqui? — Clara perguntou, tentando esconder a surpresa em sua voz.

— Eu poderia te perguntar o mesmo. Parece que esse lugar ainda significa algo para você, tanto quanto significa para mim — Lucas respondeu, com um meio sorriso, aproximando-se. — Eu sabia que, mais cedo ou mais tarde, você acabaria vindo aqui.

Clara não respondeu de imediato. Em vez disso, olhou para o carrossel e depois para Lucas, sentindo uma mistura de emoções que ela não conseguia controlar. Havia tanto que queria dizer, mas as palavras pareciam presas na garganta.

— Clara... — Lucas começou, a voz mais suave agora. — Eu sei que muita coisa ficou mal resolvida entre nós. E sei que a última coisa que você quer é reviver isso agora. Mas eu preciso que você saiba que... — Ele hesitou, como se buscasse a melhor forma de dizer o que vinha guardando há tanto tempo.

Ela o interrompeu, de repente.

— Lucas, eu não sei se estamos prontos para isso. Não sei se eu estou pronta.

— Talvez nenhum de nós esteja. Mas eu acho que já esperamos demais.

O silêncio entre eles era carregado, mas diferente da noite anterior. Desta vez, havia uma abertura, uma chance de algo além das desavenças. E enquanto ambos ficavam ali, sob o céu de outono, Clara percebeu que, talvez, Dona Teresa estivesse certa. Alguns laços, por mais desgastados, não se rompem tão facilmente.

Vidas Entrelaçadas: Entre desavenças  e reconciliações Onde histórias criam vida. Descubra agora