PRÓLOGO

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Quando finalmente compreendi que o amor dos meus pais não se traduzia em dor, quando entendi que a dor que me impuseram não era, de fato, uma prova de amor, algo em mim se quebrou. Ou melhor, algo se libertou. E tudo mudou. Bem, tudo se transformou em um único dia.

Uma noite.

Uma decisão.

Uma única decisão.

E um destino que, por fim, escapou à cruel teia de seu controle.

Cada dor, cada toque áspero, cada olhar de desprezo... tudo, tudo se silenciou, como uma melodia sem fim que se esvai. O que restava era uma quietude gelada e uma sensação de êxtase indescritível. E, ainda assim, há quem diga que sujar as mãos de sangue nunca resolve nada. Que ignorância. Idiotas.

Lá estava eu, naquele instante. Talvez uma psicopata em potencial, talvez uma alma que se perdeu nos caminhos escuros da sua própria mente. Mas naquele momento, a verdade era que nada disso importava. Minha garganta se dilacerava em gritos de dor falsos, uma performance tão perfeita que ninguém jamais desconfiaria. Eu segurava minha mãe, com um nojo profundo e visceral, e ela me encarava com aqueles olhos vazios. Aqueles olhos sem vida, sem essência. Ela não respirava mais, e eu me permitia saborear cada segundo daquele silêncio. Ela estava morta. E vadias como ela, mulheres que fizeram de mim o que sou, mereciam o fim que receberam. Uma morte sangrenta, sem piedade.

Cinquenta facadas. Cada uma dedicada as vezes que assistiu meu pai me estrupar sem fazer nada desde que eu me lembro por gente.

Não havia qualquer sombra de dúvida. Ninguém acreditaria que a doce garotinha da rua Spartvy poderia ser capaz de tamanha atrocidade. A garotinha que implorava para não a separarem da mãe, era agora uma atriz impecável, consumindo o palco da sua própria tragédia com uma frieza que desafiava o entendimento. Tudo era um belo teatro. E a plateia jamais suspeitaria. Nem eu suspeitaria, se não fosse eu a autora de toda a obra.

Meu pai? Não, nem a morte seria castigo suficiente para ele. Não havia forma de punição que pudesse apagar o mal que ele fez. Ele mereceu cada segundo de sofrimento, cada facada que rasgava sua carne, cada pedaço de sua existência sendo dilacerado. Ele merecia mais do que a dor do corpo, mais do que a dor da carne. Merecia a dor do espírito, a dor da consciência, se é que ainda restava algo de humano nele. Cada olhada sua além daquilo que um pai deveria olhar uma filha, cada palavra imunda que saiu da sua boca, tudo isso encontrou seu castigo no último golpe. Ele mereceu cada pedaço de sangue que se derramou em sua pele.

Me condene, se é assim que você vê. Eu não me importo. Todo o sangue que agora pinga sobre mim nunca será suficiente para apagar os vestígios de uma infância marcada por cicatrizes profundas, que ninguém jamais entenderia, por mais que tentassem.

Eu conheci o inferno há muito tempo, muito antes de aquela lâmina cortar o silêncio de nossa casa. Mas naquela noite, algo mudou. Eu conheci o paraíso.

O som das sirenes, gritando ao longe, rodeando-me como uma melodia estranha e silenciosa, se tornava uma música que eu quase podia tocar. E os vizinhos, com seus olhares piedosos, se aproximavam de mim, tentando me envolver em um carinho que não era meu. Eles achavam que eu estava quebrada, que eu precisava de consolo. Pobres almas. Eles pensavam que eu tinha as mãos limpas. Como se o sangue fosse algo que pudesse ser lavado. Como se fosse possível purificar o que já estava corrompido. Eles eram tolos.

Meus olhos estavam fixos nos corpos dos meus pais sendo retirados, levados pela ambulância, sua vida se esvaindo lentamente, como um sopro que se dissipa no vento. Eles desapareciam pouco a pouco, e algo dentro de mim tentava se conter, mas havia uma parte de mim que queria sorrir. Sorrir com uma intensidade que me cortava a garganta. Por mais que a boca se negasse a curvar-se ao desejo, eu sabia o que sentia. Era uma felicidade sombria, uma satisfação que me corroía por dentro.

— Vamos, querida. Você precisa de um banho, hum? — a voz suave e desconhecida da policial soou em meus ouvidos. Era quase gentil, como se ela tentasse me devolver à humanidade que eu já havia perdido. Era ela quem me tirava de minha casa, quem me conduziria ao destino de justiça.

14 de fevereiro de 2014.

Perdoe-me, pai, pois eu pequei.

OBSESSÃO PROFANAOnde histórias criam vida. Descubra agora