𝟎𝟓: Laços de família.

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Pont of view: Marília.

O sol da manhã iluminava o quarto de Marília, atravessando as cortinas de linho e aquecendo levemente sua pele. Ela acordou devagar, com a cabeça cheia de ideias para pintar, mas naquele dia não era sobre isso. Sua mãe, Joana, havia insistido que tirasse uma folga do ateliê para passar o dia com a família.

Marília se espreguiçou, sentindo um misto de ansiedade e expectativa. Fazia um bom tempo que não passava um dia inteiro em casa, longe das telas e pincéis. Ela amava sua arte, mas sabia que tinha deixado algumas tradições de lado, como os almoços em família e as conversas longas com sua irmã mais nova, Letícia.

Após um banho rápido, vestiu um vestido simples e confortável, amarrou os cabelos em um coque bagunçado e desceu para a cozinha, onde o aroma de café recém-passado preenchia o ar.

— Bom dia, filha! — saudou Ruth, colocando um prato de frutas frescas sobre a mesa. — Fico feliz que finalmente decidiu ouvir sua mãe.

Marília sorriu.

— Bom dia, mãe. Só pra constar, você foi bem insistente.

Ruth riu e deu um beijo na testa da filha.

— Você vive naquele ateliê como se o mundo lá fora não existisse. Vai fazer bem pra você respirar um pouco e aproveitar a família.

Enquanto tomavam café, Gustavo surgiu com o cabelo bagunçado e os olhos ainda sonolentos.

— Nossa artista decidiu nos agraciar com sua presença hoje? — provocou, sentando-se à mesa e pegando um pedaço de pão.

— Bom dia pra você também, Gu — retrucou Marília, revirando os olhos, mas sem esconder o sorriso.

Depois do café, os três saíram juntas para o quintal. Ruth queria ajuda para organizar algumas plantas, enquanto Gustavo planejava ensinar Marília a fazer um dos famosos bolos de laranja da avó.

[...]

O quintal da casa era um pequeno paraíso, com flores de todas as cores e árvores frutíferas espalhadas pelo espaço. Marília nunca tinha dado muita atenção à jardinagem, mas naquele dia, seguiu a mãe com curiosidade.

— Isso aqui é mais terapêutico do que parece, sabe? — disse Ruth, entregando uma pá a Marília. — Enquanto você cuida das plantas, parece que está cuidando de si mesma também.

Marília escutou em silêncio, as mãos mexendo na terra macia. Fazia tempo que não tinha um momento tão tranquilo.

Enquanto isso, Gustavo apareceu segurando uma cesta com limões recém-colhidos.

— Pronto, daqui a pouco vai sair o melhor bolo que você já comeu!

— Não põe muita expectativa, Gu. Se sair queimado, a culpa é sua.

Gustavo gargalhou e puxou Marília pelo braço.

— Vem, vai ser divertido.

[...]

Na cozinha, as duas irmãs se atrapalhavam com os ingredientes. Gustavo era mais prática, enquanto Marília, perfeccionista, conferia cada medida três vezes.

— Você é assim com as tintas também? — perguntou Gustavo, enquanto misturava a massa.

— Assim como?

— Toda meticulosa. Aposto que você fica horas decidindo qual tom de azul usar.

Marília riu, admitindo com um aceno.

— Acho que sou assim com tudo na vida.

— Exceto com suas folgas. Aí você esquece de tudo.

Os dois riram, e, apesar das brincadeiras, Marília sentiu um aperto no coração. Ela sabia que Gustavo tinha razão. A arte ocupava tanto espaço em sua vida que, às vezes, parecia que nada mais tinha importância.

Quando o bolo ficou pronto, os três se sentaram no sofá da sala, compartilhando fatias quentes com chá de ervas.

[...]

No fim da tarde, Marília estava sentada na varanda com o pai, Mário, que lia um jornal enquanto ela observava o céu começar a mudar de cor. Ele era um homem calado, mas sempre tinha um jeito especial de se conectar com os filhos.

— Você parece tranquila hoje — comentou ele, sem desviar os olhos do jornal.

— Estou. Foi bom ficar em casa. Acho que eu precisava disso.

Mário fechou o jornal e olhou para ela, com aquele olhar que só um pai sabe dar.

— Às vezes, você se prende tanto em algo que esquece do resto. O mundo tem mais cores do que as que você coloca nas suas telas, filha.

Marília sorriu, sentindo o peso das palavras.

— Eu sei, pai. Estou tentando lembrar disso.

[...]

Quando a noite chegou, a casa estava cheia de risadas, histórias e amor. Marília se despediu com abraços apertados e promessas de voltar mais vezes. 

Marília caminhava pela estrada que ligava a casa da família ao seu pequeno estúdio na cidade. A lua já brilhava alta no céu, iluminando o caminho com uma luz prateada. O ar estava fresco, e ela respirava fundo, sentindo-se grata pelo dia que tivera.

Os risos da família ainda ecoavam em sua mente, junto com as palavras sábias de seu pai. Ela olhava para o céu, onde as estrelas começavam a pontilhar a imensidão escura. Era incrível como algo tão simples quanto um dia com as pessoas que amava podia trazer tanta clareza.

Ao chegar perto da praia, onde seu ateliê ficava, Marília fez uma pausa. Ela tirou as sandálias e deixou os pés afundarem na areia fria. O som das ondas quebrando na beira do mar parecia uma canção suave, acalmando sua mente e seu coração.

Era ali que ela encontrava seu verdadeiro eu, entre o mar e a tinta, como costumava dizer. Mas, pela primeira vez em muito tempo, ela percebeu que sua arte não era tudo. As cores que pintava nas telas eram inspiradas pelas pessoas, pelas experiências, pelos momentos simples e preciosos como o que vivera naquele dia.

Marília entrou no ateliê, acendeu uma única luminária e encarou uma tela em branco. Ela sentiu a vontade de pintar, mas, ao invés de se apressar, sentou-se em sua poltrona de leitura e pegou um caderno. Decidiu que aquele momento era para organizar seus pensamentos, não para criar.

Escreveu sobre o dia com sua família, sobre o bolo desastrado que ela e Gustavo prepararam, sobre o olhar compreensivo de sua mãe e a conversa sincera com seu pai. As palavras fluíam quase tão livremente quanto os traços que costumava fazer com seus pincéis.

Pensou em Maraísa, nas conversas que tinham tido recentemente, nos mistérios que pareciam rondar sua nova amiga. Marília se perguntou se, algum dia, teria um momento tão honesto e íntimo com Maraísa quanto os que teve hoje com sua família.

"Cada laço precisa ser cuidado", escreveu no rodapé da página.

A noite avançava, e Marília finalmente apagou as luzes, deitando-se no pequeno sofá de seu estúdio. Mesmo com a cabeça cheia de pensamentos, sentia-se mais tranquila do que em muito tempo.

Amanhã seria outro dia, e ela estava pronta para vivê-lo — com mais cor, mais presença e mais amor.  

Ela sabia que, no dia seguinte, o ateliê a esperava com suas telas em branco, mas, naquele momento, estava em paz. Às vezes, os laços mais simples eram os mais importantes, e Marília sabia que não queria mais deixá-los de lado.  

Cores do coração - Malila.Onde histórias criam vida. Descubra agora