Corrói-me

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Corrói-me a força brutal que a implacável lembrança me assola, entre inebriantes ventos rasantes do tempo, que umedece o quarto e as paredes, revigorando a melancolia existente em meu ser.

Tudo começou no dia seguinte, quando fechei os olhos e enxerguei o passado. A vida sempre será uma coleção de memórias em todas as estações. Os meus ouvidos agora captavam por trás da janela do quarto o toque ritmado das gotas de água celeste na terra. O som contínuo e sinuoso transbordava de dentro da arca do meu imaginário, formando canais de rios, quedas líquidas, espirais, tudo. A cidade fora tomada pela força natural do inverno. Enquanto a chuva despencava sobre as casas e calçadas, os pássaros observavam a hora certa de clamar o voo. As asas da minha imaginação já haviam decolado e um sorriso genuíno se formou em meus lábios. Aprecio as chuvas tanto quanto o beija-flor saboreia o néctar.

Foi diante desta cena dramática de vida, numa torrente mágica em vertical, que a nostalgia apressou meu coração. Cavalos batiam à galope em meu peito, ao mesmo tempo que a fúria nostálgica da lembrança dava estalos como um chicote impreterível. Era um final de semana, início do mês de outubro. Os braços de nuvens pareciam cansados de remar contra as correntezas solares e prenunciavam chuvas. O calor se despediu quando o auge da noite subiu e o sol já adormecia no fundo do horizonte. Éramos três amigos lembrando a felicidade da juventude, das épocas juvenis, das primaveras, dos sonhos infantis, dos impulsos inocentes, das segregações involuntárias do processo impudico da vida adulta, das transformações culturais, dos enamorados infinitos, dos marcos históricos. Três cálices cheios, três garrafas de vinho vazias, queijo, amendoins, azeitonas, frutas, macarronada, e água. À mesa, em comunhão, a mulher ouvia versos vivificados saírem de minha boca; a boca de um homem poético, que nem fazia ideia do que fosse poesia; o outro homem complementava o poema confabulando com novas estrofes filosóficas. A madrugada se rompia e o tempo era dizimado. A mulher gesticulava - a mão delicada e elegante balançava com suavidade seus dedos finos, cheios de ternura, juntavam-se abaixo do rosto para apoiar o queixo. Contemplei-a, enamorei-me e me ascendi. Em sua cabeça, seus cabelos pretos se assentavam e os fios da frente desciam formando uma curva provocante para trás. Seu pescoço exalava uma fragrância dos jardins eloquentes, revelando a beatitude de suas flores. Os olhos redondos fuzilavam as bocas carnudas e masculinas que abriam e se encontravam. Os seus olhos redondos eram como luas cheias e me apontavam setas de prazer. Ah meu peito, sinto-me um rouxinol bebendo cicuta ainda no início da manhã, quando lembro das alegrias que nos fizeram rir.

Naquela noite, tomado pelo vinho, absorvido pelo sorriso de uma mulher, entusiasmado pela juventude que já passara, na melancólica esperança de que voltasse, adormeci corroído pela inocência.

OutubroOnde histórias criam vida. Descubra agora