Entre Linhas e Desvios

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O clima no ateliê parecia mais carregado que o habitual naquela manhã. Faye estava incomumente calada, ainda mais introspectiva do que o normal, e Yoko tentava, de todas as formas, manter-se ocupada sem cometer novos erros. O incidente do dia anterior, com as caixas derrubadas e o esbarrão entre elas, ainda ecoava na mente de ambas, deixando um leve desconforto no ar.

Faye estava pintando com menos fluidez do que de costume, suas pinceladas sendo interrompidas por olhares rápidos para Yoko. O silêncio entre elas agora parecia mais pesado, como se estivesse preenchido com as questões não resolvidas que pairavam entre as duas.

— Yoko, onde você guardou os rascunhos de ontem? — Faye perguntou de repente, sua voz cortante, embora sem a irritação habitual.

Yoko, que estava tentando reorganizar um conjunto de pinceis, parou por um segundo, tentando lembrar.

— Eu... acho que estão na prateleira de cima, onde você costuma deixar as amostras — respondeu, sua voz hesitante.

— Acha? — Faye ergueu uma sobrancelha, largando o pincel. — Você tem que ter certeza. Não posso ficar procurando as coisas porque você está distraída.

Yoko mordeu o lábio, sentindo o rubor subir em seu rosto. Ela se aproximou rapidamente da prateleira e, enquanto esticava o braço para alcançar a pasta, sentiu uma tontura súbita. O mundo ao seu redor pareceu girar, e ela cambaleou para trás, esbarrando na mesa com uma força que fez os objetos sobre ela tremerem.

— Cuidado! — Faye exclamou, largando o que fazia e se aproximando rapidamente. — O que está acontecendo com você?

Yoko se apoiou na mesa, respirando fundo, tentando recuperar o equilíbrio. Ela sentia seu coração disparado e as palmas das mãos suadas.

— Eu... não sei — Yoko murmurou, sem fôlego, sua voz embargada de preocupação. — Sinto que algo está errado, mas não sei o que é.

Faye a observou em silêncio por um momento, sua expressão indecifrável. Ela estava visivelmente aborrecida com os constantes erros e distrações de Yoko, mas agora também começava a sentir algo mais. Uma preocupação que ela estava relutante em admitir.

— Você precisa ir ao médico. De verdade, dessa vez — Faye disse, mais suave do que de costume. — Isso não é normal, Yoko. Você está piorando.

— Eu... eu vou. — Yoko tentou assegurar, mas até ela mesma sabia que sua resposta era evasiva. Ela havia adiado a consulta várias vezes, com medo do que poderia descobrir.

Faye soltou um suspiro impaciente, cruzando os braços.

— Não é uma sugestão. Eu não posso continuar trabalhando assim, sem saber se você vai desmaiar a qualquer momento — Faye completou, o tom firme voltando. — Se você não se cuida, como espera me ajudar?

As palavras atingiram Yoko com uma força inesperada. Não era só a frustração de Faye que a atingia, mas também a realidade de que seu corpo estava dando sinais que ela não sabia como ignorar. Mais uma vez, ela se sentia perdida, como se estivesse à deriva em um mar de incertezas que crescia a cada dia.

— Eu... não quero te decepcionar — Yoko disse, sua voz quebrando um pouco.

Faye respirou fundo, e por um momento seu olhar pareceu suavizar. Ela se aproximou de Yoko, colocando uma mão firme, mas surpreendentemente gentil, no ombro da secretária.

— Não é sobre me decepcionar, Yoko. — A voz de Faye soou menos fria do que o normal, quase empática. — É sobre você. Sobre o que está acontecendo com você.

Yoko levantou os olhos, surpresa pela proximidade de Faye e pela suavidade inesperada em sua voz. Por um momento, ela se permitiu relaxar na presença da artista, sentindo que, talvez, Faye se importasse mais do que deixava transparecer.

— Eu vou marcar a consulta de novo — Yoko prometeu, embora a incerteza ainda permanecesse em seu peito.

Faye assentiu, soltando o ombro de Yoko e voltando ao seu lugar. Mas algo havia mudado entre elas, uma conexão silenciosa que, aos poucos, começava a se formar, como uma tela em branco onde as cores ainda não tinham sido misturadas.

Yoko voltou ao trabalho, mas a sensação de tontura não desapareceu completamente. Enquanto ela tentava se concentrar, o som do pincel de Faye arranhando a tela ao fundo parecia amplificar seus próprios pensamentos.

— Então, o que você está sentindo, exatamente? — Faye perguntou de repente, sua voz surpreendentemente casual.

Yoko piscou, sem saber ao certo como responder. Era estranho falar sobre isso, principalmente com Faye, que sempre parecia tão alheia às preocupações alheias.

— Não sei... eu sinto uma estranha fadiga, tonturas às vezes... e, bom, enjoo de vez em quando — Yoko admitiu, franzindo o cenho, tentando lembrar de outros sintomas. — E também, sinto uma espécie de... desconforto? Não sei explicar direito.

Faye franziu a testa, parecendo considerar as palavras de Yoko. Algo em sua expressão parecia mudado, como se ela estivesse começando a encaixar peças que ainda estavam desconexas.

— Você está comendo direito? — Faye perguntou, mais direta.

— Sim, eu acho... — Yoko respondeu, mas sua voz soava menos confiante. A verdade é que sua alimentação havia se tornado irregular, devido à constante sensação de mal-estar.

Faye suspirou, passando as mãos pelos cabelos.

— Eu acho que você deveria falar com alguém sobre isso, um médico de verdade. Não é só uma questão de estar cansada ou distraída — disse ela, com uma seriedade que Yoko não esperava.

Yoko assentiu, embora no fundo ainda não soubesse se estava pronta para enfrentar a verdade. Algo em seu corpo estava mudando, algo que ela não conseguia entender, e isso a deixava mais assustada do que ela queria admitir.

O dia seguiu, com ambas mergulhadas em suas próprias preocupações, o silêncio entre elas agora mais carregado do que nunca. Mas a sensação de proximidade, aquela faísca que havia surgido, ainda estava ali, embora as palavras continuassem presas.

Entre Cores e SilênciosOnde histórias criam vida. Descubra agora