Maria Eduarda nunca foi fã de filmes que começam com sonhos, ainda mais sonhos que remetem ao passado. É conveniente demais. Memórias transportadas para os sonhos sem alterações ou, se existem, são somente para fins dramáticos. Deixar mais assustador, plantar mistério. Quando sonhos são apresentados assim, na mídia, Maria os acha clichê, tenebrosamente clichê. Os dela nunca foram assim.
Esse desgosto que possui por esse clichê só faz com que seus sonhos sejam ainda mais dolorosos; quando ela sonha com sua infância, tudo que encontra é um desgosto cinematográfico, um caos narrativo. Quem dera Maria conseguisse ter um sonho traumático e acordar dele pensando que acabou de sair de uma cena de um filme. Sempre acorda e passa vinte minutos em estado de choque, para daí despertar de verdade e passar mais longos períodos de tempo em um estado de desassociação. Às vezes demora para processar que seu sonho evocou algo antigo, só ficando com uma angústia difícil de ser processada que perdura durante todo seu dia.
Seus sonhos nunca são um-para-um, nunca é uma reprodução direta de uma memória, de modo acurado e "fiel". Em diversos sonhos são apenas emoções e leves sugestões, escondidas, que ela precisa desvendar para poder voltar a viver sua vida, que raramente espera por ela. E, ainda assim, os sonhos continuam vindo. E, ainda assim, ela acorda tremendo. Ela se vê paralisada em momentos do seu dia-a-dia, incapacitada de seguir em frente.
Maria não é uma grande fã dos seus sonhos e muito menos do "seu filme".
E aqui está nossa eventual heroína, sentada em sua cama e mexendo no celular, deslizando por vídeos bobinhos para tentar afastar sua mente de questionamentos válidos e tranquilizar seu coração ainda acelerado. Um simples sonho onde estava voltando do mercado na chuva foi o motivo da crise de ansiedade da vez, embolada em seu lençol. Tinha uma festa surpresa (tematizada com super-heróis) acontecia dentro de sua casa. A porta da sua casa estava vermelha e ela não deveria ser dessa cor, ela não deveria e o som da chuva escorrendo a caindo na garagem do prédiozinho se somou a essa angústia e...
Um frio abissal toma conta da boca de seu estômago. Enfim matou a charada do que atiçou ela e o momento de clareza vira terror, que vira embrulho, que vira desespero e que vira... Bom, vamos dizer que nossa "eventual heroína" agora se encontra abraçada no vaso do banheiro. Uma mão agarra a privada, enquanto a outra segura seu cabelo curto e alisado. As pernas tremendo junto de seus ombros. Sequer tinha algo no seu corpo para ser "vomitado".
Como se passar mal daquele jeito fosse a rolha, sua memória agora flui agressivamente. Pensa em Will — seu amiguinho de infância —, claro. Sempre pensa nele nessas horas e sequer nota como sempre tem ele em mente, mesmo fora "dessas horas". O barulho que um corpo faz quando tomba sem vida e do silêncio gritante que vem depois invade sua mente, na quietude do banheiro. É angustiante, e nunca tem um momento edificante, um momento em que seu trauma se torna em base para um grande desenvolvimento de personagem, ou um momento de superação heróico. Pior que vomitar é ficar presa na eterna ânsia e enjôo, mas que nunca se conclui.
Will não merecia morrer daquele jeito, ninguém merecia. Ele era apenas uma criança.
Lentamente, ela sente o ímpeto de chorar. Se sente boba, se sente fraca. Por sorte, sentir a fraqueza que a abraça, lhe enche de aversão e Maria consegue lembrar que é segunda-feira e se levantar. Maria tem que entrar no expediente às 10h, de preferência chegando no escritório às 9h30. Se tivesse acordado 7h20, talvez tivesse mais dez minutinhos ali...
O resto da manhã segue com pressa e sem a paz que acordar e começar o dia merecia. Aproveita que já está no banheiro e já escova os dentes e lava o rosto. Queria tomar uma ducha, mas já não tem tempo hábil para isso, iria fazer a manhã apressada ser ainda mais enervante. Maria segue e arruma a cama enquanto coloca o café para passar. Abrir a geladeira para pegar o leite, para o café, já a faz pensar na sua dispensa e que quinta-feira tem promoção no mercado.
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Bissextinos
Mystery / ThrillerAssassinatos estranhos vem acontecendo durante esse mês de fevereiro, causando um bafafá na mídia, querendo cobrir o que talvez seja um caso de serial killer. E com o fim do mês chegando, Maria não somente precisa lidar com um serial killer solto po...