Quatorze

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Somos livres para decidir nosso próprio destino? Não, seria tolice pensar assim. Somos inocentes o bastante para acreditar que nossas ações fazem mudanças. Pobres criaturas.


Quípor foi deixado junto à uma sentinela naquele mesmo jardim em que havia aguardado junto a Stella, havia se acostumado um pouco a altitude mas ainda temia que seu corpo não estivesse totalmente bem. A vigia sobre ele era bem mais desleixada do que quando Stella estava por perto, e imaginar que dispuseram de apenas uma das sentinelas o deixava um pouco incomodado. Não veem nenhuma ameaça em mim, ele pensou, e talvez fosse melhor assim, mesmo que não se sentisse confortável com a situação. Stella poderia ser acolhida entre os demais, ensinada à maneira dos nobres e deixada para viver escondida por ali, mas ele era diferente, era descartável. O que poderia fazer? No final, era incapaz de lidar com simples javalis, o que poderia fazer contra os guardas reais?

Para matar o tempo ele fez o que melhor sabia: pensou. Deixou seus pensamentos fluírem e teorizou consigo mesmo, sem ligar para o tempo que passava, até mesmo bolava planos de fuga que logo descartava com uma risada irônica, mas mesmo entre seus pensamentos mais sem sentido, algumas coisas o deixavam ainda mais desconfortável. Por que o rei não estava no trono? Por que tantos corredores vazios? Por que o pingente afetou tanto a rainha? Todas perguntas que ele talvez nunca soubesse a resposta.

— Ei, por quanto tempo vamos ficar aqui? — A luz do Sol aos poucos estava deixando o local, e tanto a fome quanto o cansaço apertavam sobre o rapaz.

A sentinela sequer se moveu, nem mesmo quando Quípor se colocou ao seu lado e deu um peteleco na armadura, o som foi similar ao de um pequeno sino de loja.

— Não vai ter jeito mesmo, né? — Era como se falasse com um boneco, nenhuma resposta.

Conforme o tempo se arrastava Quípor arrumou uma forma de se acomodar em um dos bancos ao centro do jardim, desdobrando o mapa sobre a pequena mesa a sua frente e estudando o pedaço de papel como se estivesse em busca de encontrar algo curioso, mas sua dedicação aos poucos foi dando lugar ao sono, e antes que percebesse, estava roncando baixinho, debruçado sobre a mesa.

O piar dos pássaros foi o que acordou o rapaz, um pouco perdido em relação ao tempo, mas era claro que o Sol estava prestes a nascer. Se envergonhou quando notou uma pequena mancha onde havia repousado a cabeça, sobre um pequeno riacho desenhado na folha de papel.

Sua postura era desleixada naquela manhã, e não conseguiu conter um grande bocejo enquanto se espreguiçava sob a brisa sutil. Sua barriga dizia que era hora do desjejum, mas sequer sabia se havia sobrado comida na mochila ou alguma água no cantil, e sua surpresa foi perceber com o canto do olho uma pequena cesta cheia de frutas. Não estava aqui antes, estava? E sua dúvida o impediu de comer, pelo menos por alguns instantes, antes de um rugido de seu estômago.

— Você foi chamado. — Quípor quase engoliu a maçã inteira de uma só vez quando ouviu aquela voz surgir subitamente. Havia esquecido completamente da existência da sentinela, pelo menos em seu momento sonolento.

— O que quer dizer? — Ainda havia certo atraso em seu raciocínio após uma noite nada confortável.

— Estão esperando por você, apresse-se. — Havia cordialidade naquela voz, ainda que não transmitisse muita emoção.

— Como estão esperando por mim? Eu acabei de acordar e... — Ele olhou para o céu, observando por alguns instantes um brilho dourado sobrepor o azul escuro. — Sequer amanheceu.

Não houve resposta por parte da sentinela, mas o rapaz preferiu evitar problemas e se apressar antes que fosse visto como um ato de desrespeito. Aproveitou para guardar algumas frutas na mochila, sabendo que a sentinela provavelmente não ligaria, e fez uma rápida checagem em si mesmo.

— Roupas... — Deu alguns tapas leves e arrumou como pode as vestes amarrotadas. — Cabelo... — Não tinha um espelho consigo, mas usou a armadura da sentinela para se guiar, mesmo que não tão precisamente, e prender os cabelos alvos para trás da cabeça. — E... é isso, estou pronto... espera! — Se virou abruptamente, recolhendo e guardando o mapa. — Agora sim, pronto. — Finalizou jogando a mochila sobre as costas.

— Siga-me. — Foram as últimas palavras que ouviu daquela sentinela, que logo girou sobre o calcanhar e começou a marchar em ritmo calmo palácio adentro.

Os corredores estavam mais movimentados, criados passavam em passos rápidos para todas as direções, e Quípor não pôde deixar de notar os olhares curiosos em sua direção, imaginou até mesmo ter ouvido algum cochicho sobre seus cabelos. A princípio acho que estavam bagunçados, mas logo caiu a ficha de que ninguém por ali tinha cabelos alvos, nem feições como as dele, um completo estrangeiro caminhando pelos corredores. Bastou um pouco de esforço para que deixasse para trás o incômodo, achava até mesmo interessante ser um pouco diferente, mas não sobrava muito espaço para pensar, sua mente sempre voltava à preocupação com Stella, e sempre se refutava com pensamentos do tipo "ela certamente está melhor que você", "ela é da família, você viu", e seus pensamentos não poderiam ser mais certeiros, pois quando a sentinela abriu as portas que levavam à uma espécie exageradamente grande de sala de jantar, entendeu perfeitamente o porquê Stella nunca havia se encaixado bem entre os Aríni. Ela era feita para algo mais.

Sentados a mesa estavam Rígoris, imponente à sua maneira, vestindo uma simples camisa branca com pequenos detalhes dourados pelo tecido fino, uma calça que parecia de um tecido mais pesado e botas de couro escuro. Seus cabelos pendiam graciosamente encaracolados sobre o rosto sorridente do Lorde.

O oráculo se sentava do outro lado, com as mesmas vestes do dia anterior, mesmo olhar vagante e mesmo penteado, talvez fosse a única pessoa presente com autoridade para se vestir como quisesse, ou talvez todas as suas vestes fossem idênticas. Ao lado dela estava um homem desconhecido para Quípor, de porte robusto e pele bronzeada, vestia uma camisa quase tão branca quanto a de Rígoris e carregava consigo um semblante cansado, parece que Quípor não foi o único a ter uma noite desconfortável, apesar disso, o homem tinha os cabelos bem cuidados e presos para trás, negros como a noite e cumpridos o bastante para tocar a cocha do sujeito, mas o rapaz não chegou a observar por muito tempo, seu olhar foi abduzido pela pessoa sentada ao lado de Rígoris, de estranha imponência.

O vestido lilás era simples, mas parecia cair perfeitamente sobre o corpo esguio da jovem. O pequeno pingente se fazia presente sobre o peito e os cabelos rubros estavam cuidadosamente presos atrás da cabeça, num penteado impecável e com alguns adornos sutis, que não condiziam bem com o semblante de Stella, claramente desconfortável em meio à toda aquela luxuria, mas Quípor não pode deixar de sorrir ao ver que estava tudo bem, pelo menos por hora.

Coroa Sangrenta - Aço e FogoOnde histórias criam vida. Descubra agora