a pergunta no vazio dos cubículos

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E você, acha que fui Divina?

Deus É a imaginação suntuosa dos homens sem coragem. É um caminho fogoso através de olhos labirínticos. É a dor de saber a resposta e permanecer sob a penumbra do egoísmo. Se eu alcancei através desse escalar de peles ardentes um paraíso pessoal, que bons alunos somos? A religião é um delírio professoral de falsos profetas tão empenhados em salvar a si mesmos que não podem enxergar que o mau que nos habita vem de seus segredos mais egóicos, da incontestável dor do esperado, de um esqueleto que não vestimos porque nosso sangue pinta cordeiros com a humanidade camuflada. Cordeiros na beira da estrada saltitando entre o instinto primal e o determinismo. Você desviaria, para esquerda ou para a direita, com a certeza carnívora de que a morte invade não pelo senso darwinista, mas por uma idolatria de sacrifício. Você engole ou cospe?

Minha fé é como tudo aquilo que esqueci, alimentada pela deturpação indigna do inventivo. Eu leio bíblias como mastigo vela, visto cânticos num mundo pós apocalíptico psicodélico, o vidro nas mãos e o punhal atrás das costas. Imagino Deus me questionando no vazio dos cubículos e sei que já atravessei Seu coração com minhas mágoas batizadas. Professo Seu nome no fundo de um pires e vejo meus olhos brilhantes espreitando aquarelas montanhosas de juízes e réus num baile sofrido de desgaste e escamas. Na mínima possibilidade da Sua glória, engulo macieiras inteiras, sinto vergonha e atravesso o maior espaço possível até um mundo que nunca foi meu. Um mundo que Ele não poderia ter criado diante do amor, fazendo-me entender que talvez deva existir um cruzamento entre o ódio e o afeto para que poetas floreiem por toda parte.

Na hora da oração, rosários suicidas sob véus submissos. É inquestionável, ao encarar cruzes invertidas, que você acredita no que maldigo mais do que as bençãos para prostitutas em beira de esquina, e eu entendo que você não cuspiria a nódoa de carne nem se pústulas de sangue e flores abrissem no umbral. O que abre é um buraco adimensional de decepção e expectativa, porque ansiamos o mau tanto quanto desacreditamos o bem. Minhas digitais escorregam pelo mármore, pela porcelana, desejando de um modo que o diabo sinta vergonha por sua falta de convicção, por sua incapacidade de ser pior do que os homens já o são por si só. E ele não precisaria esperar na porta de casa, porque ela estaria aberta, um som massivo de sapateado, roubado de sua glória por uma legião infinita de corpos.

 Sinto Deus como sinto o peso da destruição, porque não existe força maior do que as coisas das quais decidimos esquecer. Meu Deus é um trauma no meio da história, a minha vontade de Transtorno de estresse pós-traumático para que eu me esqueça que estou numa tangente entre o amor e a indiferença, pedindo socorro com mil facas em Sua direção, porque vim para sofrer na mesma intensidade que causo discórdia. Viro as costas na intenção irrealizável da criação do mundo, sete dias de guilhotina, no último eu durmo enquanto lhe cortam a cabeça, porque eu sempre faço, mas nunca, em qualquer circunstância, admito.

Você me conta sua vida através de apócrifos, marcando com mata borrão versículos e versos. Na sua argumentação exasperada, sei que Deus nunca será alguém confessando no meio da multidão, ou a beleza ordinária das coisas impercebidas. Que, enquanto sua mão se levanta sob as cabeças no púlpito, trêmulas e ensaiadas, Ele sai da sala, o eco da sua voz uma resposta incoerente no barulho do cubículo. 

Eu fui Divina, rodeada de apedrejados. Porque Deus é também uma história sobre demônios, a comparação injustificada de homens fazendo trabalho intrometido, canções paradoxais, eu puxei seu pé da cama e você nunca pode temer o que acredita.

Os homens vêm ao mundo com a resposta sobre a morte, que obsessões se explicam na sua simplicidade determinista. Trocam a vida pela cuspida culposa, aquela que não podem carregar no medo invadido de sorrir ao trancar a porta que Deus sumiu com a chave¹. No final, eles se viram nessa ardência sufocante e percebem que, finalmente, voltaram para casa, ainda que esse ódio mortal seja apenas um modo de amar o que temos medo de admitir.

[...]

¹ trecho referente, na bíblia, a Jesus que detém a chave da morte e do inferno após ter decido aos infernos e ressuscitado dos mortos: "e aquele que vive; estive morto, mas eis que estou vivo pelos séculos dos séculos e tenho as chaves da morte e do inferno" (apocalipse 1:18) e "ao nome de Jesus todo joelho se dobra no Céu, na Terra e nos Infernos" (filipenses 2:10) 


ㅡ sem Deus. (g)idle | shuhuaOnde histórias criam vida. Descubra agora