Duelo - Crônica

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O sol raiava escaldante quando os dois homens, de olhos fitos um no outro, carregavam suas espingardas. Tiraram, cada qual de sua picuá, um punhado de pólvora e derramaram-na pelo cano. Arrumaram a bucha e socaram-na violentamente. Puxaram a bolsinha com chumbos e adicionaram a quantidade que achavam mais necessária. Bateram a bucha do chumbo, colocaram a espoleta no estojo e afiaram o olho da mira.

Uma fumaça branca escapou dos canos perante o som estridente dos disparos.

Um dos duelistas chamava-se Matias, um homem bruto que não gostava de ser questionado. O outro, um velho baixo e carrancudo, era mais conhecido como Seu Chico. Naquele ponto, seus bons momentos e alegrias haviam se tornado passado, restando apenas o ódio de um contra o outro. Mas como a maioria das confusões, essa não precisava ter acontecido.

A história teve seu início anos atrás, quando Matias, um peregrino moribundo, com apenas um chapéu, uma alpercata de couro e roupas velhas, resistia à morte persistentemente. Estava decidido a não tornar-se mais uma vítima da seca. Quando já tinha dúvidas de que iria permanecer de pé, surgiu-lhe uma esperança. Era tardezinha quando os empregados chamaram Seu Chico para lhe dizer que um homem queria regatear um pouco da água do poço. O velho lhe fez uma proposta melhor: que ele fosse trabalhar para ele, como seu vaqueiro. Os anos passaram, e Matias trabalhou para o dono, obedecendo-o ao pé da letra, como nenhum de seus empregados o fez. O velho agradava-se tanto de seu novo vaqueiro que desejava que seu filho tivesse o mesmo respeito que o matuto trabalhador.

Durante esse tempo Matias semeou uma paixão incessante por sua filha, Joana. Era menina bonita. Tinha cabelos negros que caíam na cintura, olhos meigos e uma pele morena. Além disso, era menina atilada como ele nunca viu. Quando completou seus quinze anos, o vaqueiro marcou com Seu Chico para terem uma conversa séria em seu gabinete.

Mataram três galinhas e comemoraram aos montes quando os dois deram o beijo de casados. Os vaqueiros desaposentaram as espingardas da casa grande e atiraram para os cantos do céu. Os tempos nunca haviam sido tão bons para Matias. Em poucos anos, Joana já estava grávida do terceiro filho, e a família crescia como um formigueiro. Seu Chico apegou-se aos netos, e todos notavam como mudava quando estava com eles. Brincava e sorria, deixando de lado sua trombudice usual.

Foi só quando João, o mais velho, completou seus treze anos que Matias e Seu Chico começaram a ter desentendimentos. O pai não gostava quando o velho tomava frente no que dizia respeito à criação de seu filho. Afinal, era muita falta de respeito fazer isso com um homem de preceitos como Matias. Mas o sogro fazia pouco caso e começava a ensinar o mais velho da maneira que lhe aprazia.

Matias voltava para casa depois do serviço e falava com a esposa, já arreliado com o comportamento do homem. A mulher dizia que ele devia dar um desconto, mas o vaqueiro levava cada gesto do velho como desfeita.

A gota d'água foi na noite de São João. Seu Chico juntou seus vaqueiros e todos os que serviam em sua casa, e reuniu-os ao redor da fogueira, como fazia todo ano. Matias nunca participava. Odiava a cachaça pelo que ela havia feito ao seu pai. Ficou em casa, e, na companhia dele, sua mulher Joana.

João ouviu o forró e animou-se. Saiu escondido de casa e foi para o terreiro onde se fazia a festa. Seu Chico falava de pé coisas sobre Matias e sua falta de macheza enquanto todos o ouviam e pareciam concordar. Comemorou quando viu o menino João e chamou-o até o meio onde discursava, apresentando-o para sua platéia como um futuro cabra-macho, diferente de seu pai. Todos ergueram os copos e garrafas e festejaram quando ele fez homenagens ao menino.

Decidiram batizá-lo. Colocaram um copinho de pinga para ele beber. Ele bebeu, cuspiu, e eles novamente ergueram os aplausos. A música voltou, e eles continuaram a cantar: "Essa noite eu não quero ficar só. Vou amanhecer na folia do forró".

O menino queria ser como o avô, um verdadeiro cabra-macho. Tão bêbados estavam todos que não perceberam que seu copinho continuou a encher. O menino voltou para casa tarde da noite, azuretado. Quando os pais deram por sua falta, a porta escancarou-se, e o menino padeceu a vomitar no meio da casa.

Matias foi, invocado, até o terreiro criar confusão. O cunhado, que durante toda a noite manteve-se sóbrio, chegou-lhe no ombro e acalmou-o. No caminho de volta para casa, ele lhe falou sobre como realmente estavam indo as coisas da família. O poço estava secando e a seca apertando. Falou-lhe que deviam aproveitar a noite, em que todos estavam um porre, roubar o que restava e partir. Afinal, era um desrespeito contrariar a autoridade de um homem como Matias. Era o que o velho merecia.

Joana não gostou da ideia, mas Matias não quis ser questionado. Enquanto todos dormiam, levaram as carroças, os melhores cavalos e todo o dinheiro do cofre do velho, cuja senha apenas o cunhado sabia. Quando estavam na estrada, o vaqueiro refletia sobre sua decisão enquanto seu cunhado ia lhe falando de uma terra boa onde poderiam crescer economicamente. Matias achou que devia ser coisa boa, afinal, não questionava o cunhado quando ele dizia palavras que ele não conhecia. Às vezes até as repetia com os outros.

Na estrada, um bando de homens armados saiu do meio do mato e levou tudo. O cunhado foi junto com eles e não pareceu muito preocupado.

Começaram a andar pelo sertão, e a seca apertada fez com que o mais novo, de seis anos, morresse. Matias tentou um trabalho aqui e ali, mas nada havia naqueles sertões para eles que não fosse sede e miséria. Finalmente, concluiu que caíra em pabulagem e deveria voltar para a casa grande.

Fizeram a longa viagem de volta e chegaram ao poço. A esperança que os tomou caiu por terra quando viram que o poço estava trancado com um cadeado. Olhos pequenos e sobrancelhas grossas se desenharam na janela da casa não muito longe.

Foram até a casa, bateram na porta e não foram atendidos. Matias abriu a porta e deparou-se com o sogro usando seu antigo chapéu, da época em que era cangaceiro, e com sua espingarda apontada para ele.

- Me dê um motivo para não lhe descer o chumbo. - disse o velho.

Por fim, Matias lhe disse que deviam resolver as diferenças na maneira antiga e justa. Era orgulhoso demais para pedir desculpas, e aquela era a maneira como os homens resolviam as coisas. Seu chico concordou, e em poucos minutos lá estavam eles, na margem do poço. Dois corpos mortos e caídos.

Joana encontrou a chave do poço presa no cinto do pai. Abriu-o e puxou com o balde o pouco de água que ainda havia nele. Ela e os dois meninos bebiam quando um viajante de carroça e cavalo bonito aproximou-se. O homem ofereceu-se a dar-lhes uma carona para a cidade.

- O senhor faria isso por nós? - perguntou a mulher.

- Por você eu faria qualquer coisa, meu amor. - respondeu o homem com um sorriso amarelo.

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