Conto 1: O Toque do Piano

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Havia uma porta no castelo que ninguém devia abrir e eu te direi o porquê.
Era uma porta como uma qualquer, em um corredor qualquer, no andar de cima. Quadrada com uma maçaneta redonda e dourada. Igualzinha a dezenas, senão centenas, de outras. No castelo morava apenas minha família. Eu, meus pais e meus dois irmãos. Haviam pelo menos dez cômodos para cada um de nós, se assim quiséssemos distribuir em partes iguais. Mas claro que não fazíamos isso, e cada um usava apenas um quarto (com exceção dos meus pais que dormiam no mesmo, obviamente) enquanto as refeições eram sempre realizadas no salão principal, e os momentos de lazer eram desfrutados no jardim ou em qualquer lugar aconchegante. O fato é que nosso castelo era enorme, e nunca havíamos explorado ele por completo. Eu arriscava dizer que era impossível, mas mãe às vezes contava que suas irmãs já tinham feito tal proeza quando eram pequenas. Elas eram aquilo que meu pai chamaria de “criança arteira”. Mas agora nenhuma delas faz mais arte.
Que Deus as tenha.
Certo dia eu estava brincando de esconde esconde com meu irmão mais novo, e foi nesse dia que encontrei a tal porta. Enquanto eu tentava refazer os passos do garoto pelos corredores, me peguei contemplando as paredes azuis, decoradas com quadros de figuras históricas inglesas cujas quais o nome não me viam a mente. Eu quase podia ouvir a voz de Alfred, nosso professor particular, exclamando um sermão em homenagem a minha falta de foco durante suas aulas de história. Enquanto eu sorria com o pensamento e me distraía com os quadros, passei em frente a essa porta e, quando o fiz, ouvi o som inconfundível de um piano tocando em seu interior. No início pensei que havia encontrado meu irmão, e um sorriso comemorativo traçou meus lábios. O sorriso logo se desfez à medida que me dei conta de que ele não sabia tocar piano, nem minha irmã, nem meu pai e tampouco minha mãe. A última odiava barulhos, inclusive.
Eu senti uma mistura de curiosidade com medo, e cogitei abrir a porta. Mas eu estava sozinho. Se um louco estivesse do outro lado e me capturasse, a pessoa mais próxima era minha irmã, no andar de cima, trancada em seu quarto. Ela não ouviria meus gritos. Meus pais muito menos, já que estavam do lado de fora do castelo, tomando chá como sempre faziam. Quanto ao meu irmão, bem, era quem eu estava procurando antes de me deparar com essa porta. Naquele momento só Deus sabia onde o pestinha tinha se enfiado.
Dei meia volta e me afastei devagar, evitando produzir qualquer ruído mínimo que fosse.
Mais tarde, quando todos estavam na mesa de jantar, meu pai liderava a conversa. Ele expressava entusiasmo com os morangos que estavam crescendo no jardim, enquanto minha mãe, musa da etiqueta e do requinte, o repreendia por falar de boca cheia. Casualmente comentei sobre o piano que escutei atrás da porta.
— Filho. — começou minha mãe, com aquele tom de voz apático que sempre usava quando queria encerrar o assunto rapidamente — Não há instrumentos na nossa casa. Eu tratei de queimar todos quando suas tias morreram. Você era novo demais para lembrar.
Tentei convencer meu pai sobre a veracidade da minha história, mas de sua boca comilona só saiu — entre grãos de arroz e ervilha — a mesma frase que eu já ouvira dezenas de outras vezes:
— Rapazinho, no dia que esses fiapos na sua cara se transformarem em uma barba de homem, eu vou acreditar em você.
Nem tentei falar com meu irmãozinho ou com minha irmã mais velha, eram imaturos ou maduros demais para dar importância a uma entre as quase infinitas portas que haviam ao nosso redor.
Antes de ir para o meu quarto dormir, passei pelo andar da porta. Estava silencioso. Eu me aproximei com passos silenciosos e minha mão automaticamente alcançou a maçaneta. Eu não pensei muito naquele momento, apenas agi.
Girei, e então...
Nada aconteceu.
Estava trancada.
Questionei-me o motivo, mas no fundo senti um certo alívio. Se eu não pudesse abrir, então não havia nada que eu pudesse fazer, mesmo que eu tivesse tentado. Ou seja, um caso perdido.
Fui para meu quarto e comecei a dormir.

Dizem que é impossível sonhar com um rosto que nunca se viu. Talvez por esse motivo eu estava chamando minha mãe pelo nome de uma de suas irmãs. Eu dei a minha tia o rosto dela, na falta de uma referência. Mas eu não conseguia entender o que ela estava tentando me dizer. Sempre que sua boca abria, um som me assombrava. Ficava mais e mais alto.
Aquilo estava se transformando em um pesadelo, até que eu despertei.
A melodia do piano estava tocando novamente. Era esse o som que saía da boca de minha tia durante o sonho. Eram as teclas. Mãe disse que queimou os instrumentos depois da morte de minhas tias. Quer dizer que, enquanto elas eram vivas, havia instrumentos aqui.
E se fosse uma tentativa de comunicação, vinda do além?
Peguei a lamparina do canto do quarto e saí. A cada passo meu uma nota era tocada, em um ritmo bizarramente aconchegante. Familiar, eu diria, se não fosse loucura. Acelerei minha caminhada, contando a quantidade de quartos que passava, calculando exatamente onde parar.
Parei no quinto.
Bati de leve na porta e chamei pelo nome da minha irmã. Ouvi um resmungar abafado do outro lado, seguido de um "o que é?" bem irritado. Perguntei se ela estava ouvindo o piano também, mas como resposta só ouvi ela arremessar seus sapatos contra a porta onde eu encostava minha orelha.
Eu quase caí no chão com o susto.
— Eu vou contar isso pra mãe.
— E eu vou contar que você tá perambulando por aí tarde da noite.
Merda.
Ponderei minhas opções, e acordar meu irmãozinho não era uma delas. No dia seguinte ele faria um drama sobre como um monstro  — EU — chamou pelo seu nome. E então eu seria forçado a limpar a vidraça. Tirar todas as teias, limpar a menor das poeirinhas visíveis a olho nu, deixar ela "brilhando e refletindo meu rosto", como minha mãe instruía. Caramba, como eu odiava limpar aquele troço, mais que tudo.
Decidi ir sozinho até aquela porta e matar o mistério daquele piano de uma vez por todas. Nem que eu tivesse que entrar a força.
E certamente eu teria.
No meio da escuridão, a vela só iluminava um raio de um metro ao meu redor, então usei a minha memória como mapa e a melodia maldita como bússola. Eu era uma mistura de morcego com vagalume. O som das teclas estava abafado, mas ficava cada vez mais alto conforme eu me aproximava, até que eu tive a plena certeza de que estava no andar certo.
Andei devagar.
Um barulho de porta rangendo rasgou o ambiente e eu fiquei imóvel, as mãos trêmulas, forçando a vista para identificar alguém mergulhado naquele breu. Meus lábios começaram a tremer involuntariamente. Era medo. Fiquei pelo menos três minutos ali parado, na companhia da chama dançarina da lamparina, enquanto esperava por alguém que nunca esteve ali. E ouvindo a melodia incessante, é claro.
Quando reuni alguma coragem, segui o som mais um pouco. O alcance da luz finalmente alcançou a porta. Estava entreaberta, e as notas musicais soavam mais naturais quando ouvidas por aquela fresta. O interior do quarto, pelo que pude observar do lado de fora, estava tão escuro quanto o restante do castelo.
Eu estava bem perto de alguém, mas ainda não sabia quem. Eu precisava avançar.
Empurrei a porta e dei um passo para trás. A luz dourada invadiu parcialmente o cômodo, revelando um ambiente tão normal quanto os outros. Mas um vento soprou, passando por mim. Pode parecer loucura, mas senti que aquele ar gélido passou por dentro de mim. Por dentro da minha alma. Foi tão frio. Nunca fiquei nu no topo de uma montanha nevada, mas podia afirmar que aquilo que senti era múltiplas vezes pior. Não foi apenas gelado, mas também foi forte. Era como se alguém, atrasado para um compromisso importante, esbarrasse em mim. Perdi o equilíbrio, a minha lamparina caiu e rolou para dentro.
Merda.
Entrei depressa e me abaixei para pegá-la. Quando o fiz, a porta do quarto trancou-se atrás de mim com um baque. Eu desferi incontáveis socos contra a madeira, tentando abrir ou chamar atenção da minha família. Como disse antes, a pessoa mais próxima daquele quarto ainda estava bastante distante para ouvir qualquer coisa. Meu esforço foi em vão. Quando meus braços se cansaram de lutar, e meus olhos se cansaram de sangrar sal, eu agarrei a lamparina e fiquei em silêncio. Só então eu percebi que realmente havia silêncio.
O piano não tocara nada desde que aquele vento havia passado por mim. Seria aquilo a personificação da música? Um pianista fantasma? Percebi que, uma vez no escuro e com medo, nosso cérebro se torna muito criativo para elaborar explicações para coisas simples e coisas que sequer aconteceram.
Eu encontrei o tal piano.
Estava no canto, empoeirado e com teias. Estava ali há tanto tempo, que um esqueleto sentava sobre ele, em uma posição corcunda, caído sobre as teclas. Eu não tive reação alguma. Eu simplesmente empurrei aquele conjunto de ossos para o chão e assumi o seu lugar, começando a tocar com maestria um instrumento que jamais pratiquei. E eu toquei, toquei sem parar. Mesmo após a minha morte, continuei tocando.

Eu toco o piano até hoje, esperando que alguém ouça, seja atraído pela música, me encontre, abra a porta e me deixe finalmente sair.

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