O Quadro

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Ela tinha um quadro com a foto de uma criança que nunca mais a veria; beijou-o e depois soluçou.

Eva cobria a casa de incensos - acreditava no paraíso. A fumaça misturava-se com o aroma natural dos hortelãs, dando-lhe um gosto fresco na boca. Os olhos acordavam lacrimejando antes do primeiro bocejo. Não sonhava porque vivia noites profundas e fúnebres. Os pesadelos vieram durante cerca de três semanas depois e lhe arrancaram a existência. Afundara-se numa inexorável inação. Vestia-se de preto dos pés à cabeça, perambulando pela casa vazia como se fosse uma assombração. O espelho do banheiro revelava um olhar desolado e cinzento. Voltava para o quarto e se prostrava por seis ou sete horas; os joelhos ficavam doloridos, mas ela tinha fé. Durante esse tempo, não separava as mãos, apertava-as cada vez que se sentia mais distante da esperança, da misericórdia e do eterno, como se agarrasse na última centelha de vida.

Na quinta semana, Eva tirou o pano que escondia o quadro e contemplou o rosto delicado da criança. Os olhos vazios se encheram de lágrimas e jorraram como uma tsunami varrendo o seu rosto enquanto os seus lábios tremiam em reação ao abalo sísmico do luto. Com o tempo, aprendeu que se manteria segura se não pensasse. Visitar as lembranças obscuras em sua mente a faria reviver dilacerações de um amor materno.

Na sétima semana, acostumou-se a passar pela sala, arrastando os pés no piso frio da casa, e olhar para o quadro. A criança sorria para ela, e quase sorria para a criança. O sorriso ainda não se delineava nos lábios. Vinha dos olhos furtivos de uma mãe que não temia mais a morte, muito menos os presságios para o fim do mundo.

Na oitava semana tentou não dormir porque queria evitar o renascimento das memórias traumáticas que voltaram a atormentá-la. Quando suas pálpebras pesavam e as cortinas da vida se fechavam, Eva revivia sensações indesejáveis no palco dos pesadelos. O grito perturbador vindo da sala, ecoando por baixo da porta do quarto, a risada macabra de um homem, o choro inconsolável de uma criança, transformavam-se numa onda gravitacional incontrolável que a puxava para o abismo.

Não, não foi assim... a imaginação humana é uma fantástica fábrica de exageros, pensava ela. Na nona semana, Eva não conseguia mais distinguir o que provinha da realidade ou do pesadelo. Os fios quebrados desgrenhavam-se na cabeça. Tinha marcas roxas no pescoço, vermelhidão nos braços causada por uma coceira, olheiras profundas e sucos na pele. As camisas, as calças, os vestidos e as meias no guarda-roupa foram tomadas por grandes casas de aranha. Os ratos cinzentos começavam a visitá-la, convidados pelo odor fétido que vinha da cozinha.

Na décima semana, Eva vomitou sangue e caiu combalida. O corpo enfraquecido dela permaneceu inquieto sobre aquele mesmo tapete sujo que a criança perecera com um furo na testa e dois no peito. Ouviu um estalido e se assustou. Pensou que fosse uma arma. Mas não era. Não se dera conta de que havia esquecido a janela aberta, eram noites de ventos fortes. Uma lufada entrou e derrubou o quadro. Ah pequeno quadro... ela a viu sorrindo dentro da decoração, presa numa fotografia, e também sorriu antes de adormecer.

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