O Cigarro

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Aquele era o último poema que, outrora, trocaria por um cigarro.

Mentira.

Então, ela escreveu:


Meus versos como cinzas cálidas são apaixonados

e entrego-lhos em brasas, ao tapete

pois entrego-lhe o meu mundo

o meu mundo úmido, desprotegido

silenciado entre os fios de algodão molhados

que os dedos nus, desfalecidos

deixam cair a bituca de cigarro.

Na manhã seguinte,

a centelha de vida se apaga; em brasa, reacende.

A fumaça foge.


Desistiu. Trocou a liberdade pelo tempo. Largou a caneta que segurava em uma mão; na outra, equilibrou o cigarro entre os dedos, fez uma manobra e o esmagou no cinzeiro. Era prazeroso esfregá-lo às cinzas enquanto a brasa morria.

O relógio ativou o alarme.

Mí se espreguiçou na cadeira e desativou o alarme. Fumar e escrever eram as suas armas contra Cronos. Puxar a fumaça lhe enchia de combustível para enfrentar o deus do tempo. Posicionava a caneta como uma espada e as palavras saíam mortais, carrascas como raios ferozes. O tempo estava morto... até o alarme ressuscitar o rei dos titãs.

Despiu-se retomando à realidade. O ponteiro acelerava os minutos. Mí vestiu o uniforme branco, guardou a touca e pegou a bolsa que estava vazia. Disse a si mesma, antes de sair e se benzer, para não esquecer de comprar os cigarros.

Mí trabalhava em um pequeno estabelecimento, de frente a uma farmácia, no fundo ficava uma padaria. Às seis, ajudava Rosa a vender os pães e os salgados quentinhos, feitos na hora; uma fileira enorme se formava dez minutos antes. Às dez e meia, ela levava informações de contas pendentes para as farmacêuticas, depois voltava e descarregava as caixas de mercadorias na venda - frutas frescas, bolachas empacotadas, fardos de suco, refrigerante, água, bebidas alcoólicas, cremes dentais, sabonetes, materiais de limpezas.

Mí era uma mulher forte, tinha braços largos e vigorosos, nem uma gripe lhe derrubava. Gostava de trabalhar, fazia hora extra todos os dias, estava sempre em movimento. Nunca foi vista parada. Limpava as vitrinas, o freezer, o chão, os banheiros, conferia os preços dos produtos, até substituía o caixa.

Os intervalos eram os únicos momentos que ela deixava todos os serviços porque precisava fumar. A porta lateral da padaria dava acesso a uma área cheia de vasos com flores e uma grama morta no canto do muro. Mí se escondia por trás da geladeira velha que havia ficado lá para guardar objetos perdidos. Não que fosse um segredo, todos sabiam do seu vício, mas preferia se esgueirar, sorrateira, e agachar com o cigarro na boca para que ninguém a notasse.

No final da tarde, antes de ir embora, sentiu a falta dele. Seu melhor amigo. Podia levá-lo à boca e pressioná-lo com os lábios lascivos sem medo.

Mais uma conferência para ver se não havia esquecido nada a fazer. Rosa já tinha ido embora. Tirou a touca, soltou os cabelos e saiu.

Não tinha mais cigarros na venda ao lado. Não vendia cigarros na farmácia.

Em casa, sem cigarro, entristecida, afundada numa melancolia sem volta, lembrou do jazz, do rock, dos carros, da juventude, do passado, e escreveu:


Pois, às vezes

dou-lhe tudo, meu mundo

e me resta a poesia, nessa noite fria, nesse ar enluarado,

pois, às vezes me esqueço

dos poemas que troquei por você

nas madrugadas perdidas, nas ruas da indecência, nas esquinas voluptuosas

o meu coração de vidro, despedaçado, formando versos de cacos dramáticos

a fumaça suave, lenitiva

a solidão escura de um bar vazio

No fim do batuque, sem barulho, preso em meus lábios

só me restava você.


OutubroOnde histórias criam vida. Descubra agora