Na voz de Gabriel LeBlanc,
Um dia antes da minha descida, eu me despedi. Havia uma névoa densa, dando a impressão de que o mundo todo estava opaco. Por alguns momentos, admirei os flocos caindo sem cessar, semelhante a uma chuva de algodão.
Arranquei a camisa e caminhei pelo bosque, deixando o ar gelado penetrar meu corpo e aliviar meu íntimo. O frio sempre exerceu grande fascínio sobre mim.
E tudo o que eu sabia naquele dia, é que estava prestes a trocar o frio e a neve pelo mormaço e um sol escaldante. Naquele momento, até senti o tédio e o marasmo grudando em mim como uma segunda pele.
Numa corrida rápida, alcancei o pico mais alto para que meus olhos alcançassem toda a extensão daquela floresta. Foi uma despedida rápida, para que o arrependimento não corroesse a minha alma, e para encerrar, apostei uma corrida com um cervo e só então, eu me deixei cair.
Três anos após minha queda, posso dizer que estou totalmente integrado a esse lugar. É como se sempre tivesse pertencido a ele. Ainda sinto a ausência do frio, é verdade, mas nem tudo é perfeito como gostaríamos que fosse.
O fato é que agora, aqui estou eu, sem nenhuma explicação aparente que justifique o que estou prestes a fazer. Mas preciso desesperadamente confrontar aquele rosto. Certificar-me de que a intuição de Gael não é assim tão certeira. E ele há de amargar sua derrota. Elias também.
Respirei fundo, observando a casa iluminada, sentindo uma obstinação me dominar.
Não pude deixar de levar um ligeiro choque quando entrei na sala e me deparei com o ambiente extremamente familiar. Era como se tivesse frequentado aquele lugar a minha vida toda.
Claro que as pessoas acomodadas nos confortáveis sofás, totalmente focadas em uma tela plana gigante, não podiam me ver. Eu as ignorei completamente. Nenhuma delas era a que me interessava. Não era o rosto que eu procurava, mas eu sabia exatamente onde ele estava.
Sem qualquer dificuldade, materializei-me em seu quarto e observei o sono inquieto. Os laços que prendiam sua vida ao corpo eram tênues. — Tão frágil! — pensei.
Como se estivesse hipnotizado, admirei o arfar do seu peito e o descompasso perfeitamente audível do seu coração. Visualizei o contorno das veias azuis na pela translúcida do seu pescoço. Elas eram como rios correndo para lugar algum.
Se alguém me visse agora, certamente veria os meus olhos arregalados de assombro.
Ela é bela!
Insossa, insignificante, medíocre, — adjetivos que eu mesmo havia aplicado à ela — agora eu sabia, não faziam qualquer sentido. Os cabelos claros como o trigo se espalhavam, emoldurando um rosto suave e angelical. A roupa em desalinho mostrava o pássaro tatuado em suas costas, como se estivesse vivo sobre a porcelana da sua pele.
— Céus! — exclamei para mim mesmo, saltando de lado. É que do nada, ela se remexeu na cama, parecendo assustada.
Mordi o lábio com raiva da minha própria burrice. — Ela não pode te ver, seu idiota! — resmunguei mentalmente, sem esboçar qualquer som.
Maravilhado, vi um par de olhos verdes e ternos abrindo e piscando os longos cílios demoradamente, focados, mais focados do que uma pessoa adormecida e sonâmbula deveria ter. Depois, ela estendeu os braços na direção exata onde eu permanecia estático e assombrado. As palmas róseas voltadas para mim, como se buscasse me tocar. Como se pudesse me ver.
Então um calor repentino se espalhou sobre mim. Um calor novo, diferente, forte, mas sem queimar. Minha alma revirou do avesso enquanto eu focava seu rosto de porcelana.
Mesmo de onde estava, pude notar que ela tremia como se estivesse com frio. Inexplicavelmente, senti vontade de tocá-la, afagar seus cabelos, afugentar qualquer pesadelo que ela pudesse estar sonhando... Um frêmito doloroso sacudiu meu intimo numa avalanche de sentimentos esquisitos. Prendi meus punhos para me controlar.
Tudo dentro de mim estava mudando, desconectando. Me vi ali, flutuando para o espaço, perdido, vagando a esmo, dando cambalhotas e mais cambalhotas, girando em torno do meu próprio eixo. E depois, milhões de cabos de aço me trouxeram de volta e me prenderam, me ligando a uma única coisa — aquela garota.
De repente tudo ficou muito claro para mim. Eu não cai. Não foi a falta da gravidade. Foi ela!
Apenas ela!
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O VALE DA LUA
RomanceGabriel LeBlanc sempre soube que seu destino era assumir o comando do seu mundo. Ele se sentia preparado para isso, embora ainda lhe restasse uma prova a cumprir. Prova essa que ele estava tirando de letra. Só não contava que seu plano perfeito iria...