Prólogo ~ Enzo Castolone ~

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Era pra ser mais uma ordinária noite de sábado no Cüllman's Bar.

Cerveja e boa música no jukebox, as loiras peitudas de sempre na mesa de sinuca, o clube dos cafajestes jogando poker na mesa do canto e Bill bêbado no balcão, contando suas velhas histórias para o dono do bar, enquanto este trabalha e serve a todos.

Quem o visse em sua camiseta preta de gola V e jeans surrado, não poderia imaginar que tudo ali girava ao seu redor. Ele era a essência daquele lugar. A alma, o motivo. Cabelo acobreado e tão bagunçado quanto sua vida, corpo esculpido para o pecado e marcado com tatuagens tão irremediáveis quanto as cicatrizes da alma; pele de alabastro e olhos verdes profundos, intensos, que traziam uma tristeza tão antiga, quanto uma saudade recente. Noah Cüllman. Aquele que um dia retornou a Springfield – Nebraska, como um marginalizado forasteiro. Aquele que ajudou sua tia Eliza a reerguer aquele bar, valendo-se de uma velha e famosa lenda da região. Aquele que ressurgiu das cinzas, como uma Fênix, quando a tragédia destruiu o único lugar no mundo onde ele conseguiu fincar raízes.

Tinha tudo para ser só mais uma noite ordinária de sábado do verão de Springfield... Se algum engraçadinho não tivesse colocado a música errada para tocar no jukebox...

Noah ouviu e reconheceu prontamente os primeiros acordes de Heart of Gold, do Neil Young e sentiu seu corpo enrijecer-se e arrepiar-se sucessivamente, ao doce som daquela gaita. Num milésimo de segundo fugaz, sua mente traidora o faria voltar quase dois anos no tempo, numa noite estrelada de setembro; no seu violão soando aquela melodia límpida, bem ali na mesa dos fundos, e cobrindo-lhe a nudez do corpo e da alma entregues em oferenda.

Num milésimo de segundo fugaz, sua mente ardilosa o faria relembrar os olhos castanhos que ele trabalhava dia após dia na impossível missão de riscar de sua lembrança para sempre. Brilhosos, úmidos e sorridentes, eles coroavam o rosto de boneca, que ele fitava enquanto cantava.

Cantava para ela. Expunha sua alma para ela...

Pra depois ela... o trair de maneira tão... vil.

Obrigando-se a voltar ao presente, como um vigoroso balançar de cabeça, ele rosnou irritado, marchando na direção do desgraçado que ousou colocar aquela maldita música:

Quem foi o infeliz imbecil, cérebro de excremento, que colocou essa música estúpida?!

Ao chegar à frente do bar encontrou cada rosto fitando-o assombrado, com sua violenta reação. Todas as conversas e gargalhadas cessaram de repente, cada cabeça girou na direção do corajoso forasteiro parado de frente ao jukebox, e ainda de costas para Noah, após desafiá-lo – aparentemente – sem saber.

O estranho virou-se lentamente. Era novo e franzino. Usava uma camiseta branca, com as curtas mangas enroladas até os ombros, cabelos não tão curtos e pretos disciplinados com gel, deixando um ousado topete na testa, calças black jeans muito justas e All Star surrado. Tinha a pele bem morena, bronzeada pelo sol, e os olhos negros como a noite. Tinha o coração martelando freneticamente em sua caixa torácica, muito embora ninguém pudesse desconfiar ou imaginar o porquê.

Noah o encarou por um minuto e algo lhe corroeu até o cerne dos ossos, com a familiaridade que encontrou naquele olhar atrevido e rebelde. Havia... alguma coisa estranha com aquele olhar. Parecia uma emoção muito contida, uma ansiedade latente, um brilho de desafio.

Ele tratou de ignorar este rápido escrutínio e repetiu, exasperado:

O que, diabos, você pensa que está fazendo?

– Colocando uma boa música para tocar, antes de pedir uma cerveja. – o forasteiro foi categórico. Ele era muito jovem, tinha forte sotaque estrangeiro, talvez italiano, e a atitude muito rebelde atenuava-lhe os traços andróginos, pendendo mais para o masculino.

A Lenda de Nós DoisOnde histórias criam vida. Descubra agora