Segunda, 2 de julho

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— Tá tudo certo, né? Você já testou as chaves e, agora, tem acesso a todo o prédio. Queria te acompanhar nesse primeiro dia, mas, infelizmente, surgiu um imprevisto e preciso resolver uma certa pendência antes de ir à firma. Já me atrasei algumas vezes nas últimas semanas e não quero fazer isso de novo só por besteira de burocracia. Sem mim, parece que o projeto do novo sistema de segurança não vai pra frente. Preciso ficar monitorando a equipe que está focada nisso... Enfim, vou lá e, depois de resolver, já ficarei direto na empresa. Volto umas 19h, por aí, tudo bem? Já te expliquei tudo sobre os medicamentos. Fiz uma colinha aqui pra você não esquecer dos horários. Recomendo usar o despertador, porque o de opioide não pode atrasar. Qualquer coisa, me liga. Você tem o meu número, né? Até breve!

Seu Antônio, alojado em sua cadeira de rodas, estava mais no canto da sala, observando a tela da televisão sem ao menos piscar. Agasalhado com duas camadas de roupa, o coitado ainda parecia tremer de frio, como se estivesse numa sala de frigorífico. Goiânia não costuma fazer esse frio todo nem nos dias mais amenos; ainda estávamos longe do inverno. Sentei-me ao seu lado e passei um tempo assistindo o que quer que estivesse passando na televisão antes de reparar nos detalhes ao redor da sala.

A decoração era toda baseada no contraste suave entre tons terrosos e escuros, com algumas pequenas estátuas que passavam despercebidas por serem tolhidas em madeira e se mesclarem ao ambiente. Era possível ver símbolos geométricos no suporte das esculturas. Confesso que senti falta do aconchego de porta-retratos em cima do rack. Havia somente decorações superficiais e insípidas. Ouvia-se o lustre nada modesto tilintar vez ou outra, mesmo estando a metros dali, mais precisamente na sala de jantar. Era gigantesco e não combinava muito com a estética proposta do apartamento.

Dei alguns passos rente ao corredor e percebi que haviam seis portas que desembocavam em lugares distintos. Três quartos abertos e um escritório fechado, além da cozinha e de um banheiro para visitas. Eu sabia que uma dessas portas dava para o escritório por destoar das demais. Em vez de ser trabalhada em madeira, parecia ter sido fabricada em ferro escuro. 

Na parede ao lado dessa mesma porta, era possível ver um aparelho de reconhecimento facial. Passei meu rosto perto da maquinaria, como quem não queria nada, e uma voz um pouco robótica demais apenas me respondeu que a primeira de três tentativas já havia sido feita. Não sei o que aconteceria se eu insistisse até chegar na terceira. Talvez, não estivesse disposto a saber.

Retornei ao ponto zero, onde Seu Antônio estava ainda imóvel, e segui adiante para a parte da sala de jantar, que ficava do outro lado. Ela brilhava quase naturalmente pelas móveis feitos à base de vidro, que refletiam parte a luz solar que enveredava na grande janela do centro do cômodo. Esgueirei-me mais para frente até chegar no que parecia ser um novo corredor, só que, dessa vez, tinha somente uma porta por entre as paredes. Estava entreaberta e era possível ver que se tratava de uma lavanderia. Ao final do corredor, um grande espaço marcava o início da sacada.

Além do gramado sintético que abrigava o espaço gourmet e uma churrasqueira aparentemente intacta, era possível ver uma piscina com bordas infinitas. O apartamento estava no 21º andar e, de fato, a vista lá de cima era extraordinária. Digna de filmes hollywoodianos.

Fiquei lá durante um tempo até o momento em que senti o celular tremendo em meu bolso. Estava na hora de dar uma das medicações para Seu Antônio. De volta à sala, ele permanecia imóvel. Era como se o tempo tivesse parado para aquele senhor. Um verdadeiro estranho em seu próprio corpo. Se a teoria da alma existisse e todos nós a tivéssemos, Seu Antônio possivelmente seria uma exceção à regra.

Eu só tinha o visto algumas vezes em toda a minha vida, porque o Renato sempre foi bastante reservado com o seu tio. Então, não tive oportunidades o suficiente para conhecê-lo. E eu acho que ele nunca notou a minha presença, de qualquer maneira. Eu era um estranho para Seu Antônio assim como Seu Antônio era um estranho para si mesmo. 

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