Sexta, 13 de julho

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A tia Lu, mais uma vez, conseguiu me salvar sem ao menos perceber que estava fazendo isso. Decidi olhar para tudo o que acontecera sob um novo ângulo. Enquanto estivesse cuidando de Seu Antônio, cuidaria de verdade. Não era somente um emprego de verão: era uma forma de trazer um pouco de conforto para o corpo fragilizado de um senhor que há tanto viveu e que merecia uma pessoa que realmente estivesse lá para ampará-lo.

Renato passou grande parte do dia trancado no escritório. Quando cheguei ao apartamento ainda pela manhã, ele havia me abraçado demoradamente, como uma forma de pedir desculpas mais uma vez pelo que tinha acontecido; mas ficou somente nisso. Não se estendeu muito. Acho que ele estava abarrotado de coisas para pensar no trabalho e eu jurei a mim mesmo que não comentaria sobre o seu estado de saúde, apesar de a curiosidade fervilhar dentro de mim vez ou outra.

Preparei as refeições de Seu Antônio ao longo do dia. Nada complexo pelo fato de eu estar longe de ser um chef de cozinha ou simpatizante da gastronomia. Deu para o gasto. Levei-o para passear após o almoço, agora dando algumas voltinhas pelas calçadas que circundavam o prédio. Retornamos para o apartamento. 

Até hoje eu não conseguia entender o motivo de Renato optar por um apartamento na cobertura, sendo que tudo é mais difícil para uma pessoa que precisa de cadeira de rodas. Tudo bem que o elevador era moderno e relativamente rápido, além do prédio ser mais acessível do que os que costumamos ver por aí, mas as coisas seriam mais fáceis se os dois morassem no primeiro ou segundo andar ou até mesmo numa casa em vez de prédio.

Já era 18h30 e o alarme do celular apitou em meu bolso. Estava na hora de administrar o último remédio do dia antes de ir embora. Deixei Antônio na sala com a TV ligada e fui direto ao seu quarto para buscar o comprimido na caixinha de tom azul com vermelho. Por estar com pressa e distraído, esbarrei com força no fundo da gaveta e, em vez de pegar a caixinha, forcei, sem querer, minha mão naquele material rígido. 

Escutei um "clique" ao fazer isso. Forcei minha mão novamente, só que dessa vez na extremidade inferior do fundo, e a madeira branca se levantou, como se tivesse sido acionada para cima. Era, no final das contas, um fundo falso que estava repleto com caixinhas pretas. Nas embalagens, o nome dos medicamentos repetidos: "Fentanil".

Joguei "Fentanil" no aplicativo do Google e, como resposta, descobri que era um sedativo 100 vezes mais forte do que a morfina. Qual o motivo de o Renato "esconder" aqueles medicamentos em fundo falso? Será que eram os seus próprios remédios para aliviar os sintomas da doença? Voltei a madeira para o local onde estava e fechei a gaveta rapidamente ao escutar barulho de passos. Renato havia saído do escritório e, agora, estava escorado na porta entreaberta do quarto de Seu Antônio. Respirou fundo antes de falar comigo.

— Hoje foi um dia daqueles. Não falei contigo direito, não é? Mas agora podemos conversar. Primeiro, vamos tirar o elefante branco da sala. — Gelei por um momento. — Eu pesei um pouco a última sexta ao comentar sobre a minha... saúde. Só quero que saiba que foi a primeira vez que mencionei a doença em voz alta. E que bom que foi com você, Miguel. Mesmo sem tanta proximidade assim, já que somente estamos nos conhecemos de verdade por agora, eu me senti confortável a ponto de trazer um pouco da vulnerabilidade que habita dentro de mim nessas últimas semanas. E eu tenho certeza que você não comentaria sobre isso com ninguém. Sei que posso confiar em você. — Só nas últimas horas, tanto Cecília quanto tia Lu já sabiam da doença. Eu deveria começar a guardar as coisas apenas para mim. Renato não merecia aquilo. Depois de tudo o que já deve ter sofrido, ele precisava de alguém que o ouvisse de verdade, sem ter que pisar em ovos. Decidi fazer algo ousado dessa vez como uma forma de recompensar minhas recentes falhas.

— E eu me sinto lisonjeado de ouvir isso, Renato. Acho que podemos substituir aquelas memórias com novas, se você permitir que eu durma aqui hoje. Dessa vez eu aviso para a minha mãe. Mesmo que você tenha dito a ela que eu dormiria aqui na última sexta, minha mãe ficou preocupada porque, dizendo ela, você telefonou quando já era mais de 10 horas da noite e eu não tinha dado sinal de vida até então.

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