Quinta, 19 de julho

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Havia acabado de chegar no apartamento de Renato. Sentei-me ao perceber que minha visão estava embaralhada. Mexia minhas pernas sem parar, denunciando o atual estado de espírito. Apesar de aparentemente não ser nada demais, me incomodava o fato de fazer algo "na surdina", digamos assim. Eu sabia que Cecília era tão curiosa quanto eu; talvez até mais em determinadas situações.

Senti o celular vibrar. Era o sinal de que ela estava chegando. Ao atender o interfone, digitei o código que estava aficionado na parede ao lado, rezando para que fosse a senha que destravasse a porta da entrada do prédio. "Abriu?", perguntei. "Aham, 2105, né?". Cecília demorou o bastante para que eu tivesse tempo de verificar como estava Seu Antônio. Ainda dormia, não quis acordá-lo naquele momento.

— Depois de você ter contado sobre o pesadelo e o fundo falso na gaveta de remédios, eu senti a necessidade de conhecer o apartamento. Mas olhando agora... Não parece um cenário de filme gore nem cativeiro. Acho que nós estamos seguros. — Cecília teceu seu review inicial, ainda passando os olhos por entre a sala. — Confesso que esses objetos de decoração são um pouco bizarros. Os símbolos no teto também soam como algo vindo diretamente do ocultismo. Deve ser uma nova tendência de design que estou por fora.

— Foi só um pesadelo. Estou tendo muitos nos últimos dias. Acho que o fim do ensino médio no próximo semestre tá mexendo mais comigo do que o normal.

— Fale por você. Mal vejo a hora daquele inferno acabar. Nasci para ser bióloga e... — Cecília se interrompeu. — O que é aquele black mirror ali no corredor?

— É o sistema de reconhecimento facial para abrir a porta do escritório.

— Ah, é mesmo! Você tinha me contado antes. É outro nível de riqueza, segurança e tecnologia para mim. Está fora da minha alçada. — Cecília se aproximou do aparelho e ficou de frente a ele antes que eu pudesse impedir. Uma tentativa já havia sido feita.

Corri para perto de Cecília e puxei-a para fora do campo de visão da câmera de reconhecimento, mas o sistema me captou nesse ínterim. Duas tentativas. Sentia meu coração palpitar por entre a camiseta. Cecília olhava-me com os olhos semicerrados, captando os gestos ansiosos que projetava pelo corpo.

— Mas que medo é esse?

— Eu não sei o motivo, mas... se o Renato colocou todo um sistema de segurança aí, é porque ele não quer que ninguém tente entrar.

— Você disse que o último rolê com o Renato foi ótimo e que havia contornado as situações estranhas de antes. Pôde conhecer mais sobre o misterioso amigo de seu pai. E você não comentou que ele é maravilhoso, quase um protagonista interessante de filme francês (apesar de eu achar que praticamente nenhum seja)?

— É, mas sei lá... Ele já se comportou de uma forma estranha antes.

— Sim, pois é. Eu assino embaixo nessa. Não podemos confiar em absolutamente ninguém, ainda mais numa pessoa que em sã consciência decidiu ser amigo do seu pai.

Cecília continuou andando pelos cômodos para ver se encontrava algo digno de nota. Passou pela cozinha e pegou uma maçã com um tom brilhante de vermelho, ziguezagueou pela sacada e tornou a espionar os perímetros do corredor. Fez um gesto de silêncio com o dedo e andou na ponta dos pés até entrar no quarto de Seu Antônio. Aproximou-se da cômoda e tentou abrir as gavetas.

— Cecília, o que você está fazendo? Volta. — Cochichei.

— Qual é a gaveta dos remédios? Ah, achei. — Cecília passou o dedo pelas embalagens, parou por um instante, encarou a parede e depois saiu do quarto. — Nossa, eu não conheço muito de remédio, mas só coisa extremamente pesada, de morfina para cima. O que, de fato, o Seu Antônio tem?

Assim que Cecília terminou de expelir aquelas palavras, escutei o barulho da maçaneta sendo girada incessantes vezes, justamente da porta de entrada do apartamento. Alguém estava tentando entrar. Puxei Cecília para o quarto de hóspedes e pedi para ela ficar atrás da porta entreaberta.

— Miguel! Acabei de me tocar que esqueci a chave no escritório e não consigo entrar. Abre pra mim?

— Já estou indo!

Respirei fundo antes de destrancar a porta. Renato parecia sem fôlego. Sua respiração estava acelerada e era possível escutar ruídos de quando alguém está buscando o ar para preencher pulmões vazios. No entanto, agia como se estivesse tranquilo. Entregou um sorriso e seguiu rumo ao escritório.

— Obrigado, esqueci um documento aqui e tive que... — Renato calou-se ao olhar em direção ao sistema de reconhecimento. — Por que diz que alguém tentou entrar no escritório duas vezes? — Gelei por um instante senti minhas pupilas dilatarem.

— Co-como assim? — Precisava ser mais convincente.

— Miguel, você tentou entrar no escritório?

— Claro que não. Eu devo ter passado pelo corredor e o sistema deve ter captado meu rosto. Ele reconhece muito facilmente, mesmo que você não esteja parado em frente dele.

— E como você sabe disso? Miguel... Miguel...

— Não, e-eu...

— Miguel, eu dei o meu voto de confiança em você. Te chamei por saber que podia confiar no filho do meu amigo. E eu já te conheço um pouco agora, de qualquer maneira, para saber que você, pelo menos aparentemente, me respeitaria. — Renato começou a se aproximar de mim. Seus olhos estáticos em minha direção. Um vislumbre de sorriso começava a cortar o seu rosto. Colocou sua mão em meu ombro esquerdo.

— Não entendi. Claro que eu te respeito. Por que eu teria vontade de entrar no seu escritório? — "Por deus, Miguel, minta melhor", pensei.

— Eu sei lá no fundo que você é, digamos, curioso... para não dizer outra coisa. Mas ir onde não é chamado e falar com quem não deve podem trazer consequências nem sempre amigáveis. — Seu tom que não parecia nada amigável. — Eu odeio perceber que estou sendo enganado. É a única coisa que pode me tirar do sério. Você está me entendendo? — Apertou sua mão com relativa força contra meu ombro arredio.

— Eu entendi, Renato. Foi sem querer mesmo. Não vai acontecer de novo.

— Está vendo? Com você é tudo muito fácil de resolver. E é claro que seu jeitinho fofo colabora muito pra que eu quebre o clima de sermão. Só vou te pedir para nunca, em hipótese alguma, fazer algo escondido de mim e ainda no meu apartamento, como, sei lá, trazer uma pessoa sem antes me consultar. Eu fui... claro?

— Sim, me desculpa de novo.

Renato deu meia-volta e, em vez de entrar no escritório, andou mais alguns passos até se aproximar do quarto de hóspedes. Lentamente, foi colocando a mão na porta e inclinou seu rosto para flagrar a minha reação. Renato continuava com um sorriso torto no rosto. Por fim, fez um gesto indecifrável com a cabeça, voltou a olhar em minha direção e trocou o caminho para o do escritório.

Foram duas horas de muita tensão. Cecília saiu do quarto de hóspedes assim que eu dei o sinal, quando percebi que Renato já estava em uma distância segura fora do apartamento. Ela me encarou com olhos inquietos, seguindo o gesto com as sobrancelhas arqueadas.

— O que foi isso, Miguel?

— Eu disse que não era uma boa ideia você vir aqui. Você deveria me ouvir mais.

— Achei totalmente descompensada a reação dele. Não achou estranho? Nossa, minhas pernas estão dormentes de tanto ficar numa mesma posição.

— Está na hora de você ir embora, depois conversamos mais.

— Não, agora eu vou ficar aqui pra ver se encontro algo e...

— Você está vendo muitos filmes de terror mesmo. Quando sair, tente agir normalmente, pelo menos da melhor forma que conseguir.

— Eu quero que você me mande mensagem caso algo do tipo aconteça de novo. Não sei se continuo sendo do time Renato. Acho que minha fanfic com vocês juntos deu uma balançada real agora.

— Ok, depois conversamos.

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