Sábado, 21 de julho

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Eu pensei que seria diferente, mas, ontem, Renato foi muito agradável comigo. Não fizemos uma nova sessão de conversas regadas a vinho e vinis. Em vez disso, ele preparou uma parmegiana, que estava com um suave gosto de "metal queimado" no fundo, e conversamos um pouco enquanto não dava a hora de desligar o imenso forno elétrico para experimentarmos, por fim, a compota de morangos assados para a rodada de sobremesa. Renato me abraçou algumas vezes, fez carinho em meu rosto e se despediu com um beijo na testa. Acho que realmente não iremos além disso.

Na semana passada, ele havia deixado tudo muito claro. Só que, eu não sei, parece que ainda assim continuava instigado, como se estivesse dentro de um jogo interno querendo sair vitorioso na última rodada da competição. Sem contar que tinha algo nele que me deixava mais vulnerável do que naturalmente já era.

É claro que o jeito que ele me tratou na quinta não evaporou de minhas memórias. Ainda estava lá, uma lembrança tímida que lutava para ser esquecida. Sabia que eu tinha acionado outro gatilho que o fazia mostrar a sua persona mais nervosa. 

E eu preciso confessar que, além do medo, vinha algo intenso dentro de mim quando Renato me olhava de uma forma não tão amistosa. Em vez de me afastar, ele me atraía, mesmo que não tivesse a aparente intenção. Eu queria e não queria continuar indo ao seu apartamento. A balança entre desejo e medo não estava desnivelada de forma tão considerável.

Marquei de visitar a tia Lu mais para a noite, mas estava me sentindo exaurido e já era 17h30. Era como se tivessem sugado parte da minha energia vital. Eu poderia dormir por horas e horas que continuaria sentindo um sono pernicioso. Estava tentando assistir a um filme no aparelho de fita cassete quando minha mãe deu leves batidinhas na porta do quarto. Entrou em seguida. Só não esperava que meu pai estivesse junto.

— Compramos um lanche e gostaríamos que você descesse lá na cozinha pra gente conversar um pouco.

— É, eu ia pra firma resolver algumas pendências, mas sua mãe insistiu para que eu também estivesse presente.

— É sábado, pelo amor de deus. Você pode deixar isso para depois de amanhã.

Os dois fizeram cerimônia durante um longo tempo ao perguntar sobre o trabalho com Seu Antônio, se eu realmente estava guardando o dinheiro no fundo do cursinho e o motivo de eu estar com um aspecto tanto cansado quanto desleixado. Finalmente, contaram a novidade: Alice estava grávida e eu teria uma irmã. Não sei como as coisas funcionam, mas não era perigoso engravidar depois dos 30 anos?

— Na verdade, a taxa de fecundidade diminui a partir dos 35, mais ou menos. É um pouco arriscado, já que estou na casa dos 39, mas, ainda assim, vale a pena o desafio. Miguel, estava destinado. Eu sinto aqui dentro de mim que a Flora terá um grande objetivo em vida e eu não posso ir contra os sinais da natureza. — Meu pai parecia incomodado ao ouvi-la se justificar. Olhava ao redor e podia jurar que ele queria estar em qualquer lugar, menos ali com a gente.

Eu não tive reação. Ainda estava tentando assimilar o que aquilo significava. E como puderam esconder isso de mim? Ou melhor: como eu não percebi os sinais claros que estavam bem na minha frente? Eu acho que estou mais distraído do que o normal. Em breve, sairia de casa como meus pais tanto queria e nem teria a oportunidade de vê-la crescendo, ao menos não tão de perto. Eu só queria que ela viesse bem mais cedo, quando eu ainda não estava nem sequer cogitando na possibilidade de crescer e tomar decisões que mudariam minha vida para sempre.

Apenas respondi palavras avulsas e automáticas, tentando interpretar um personagem empolgado com a notícia, ao passo que fingia ignorar o desconforto que senti ao perceber que Alice escondera a gravidez durante um certo tempo. Ambos ficaram satisfeitos com a minha reação, principalmente quando disse ter adorado a escolha do nome em homenagem à vovó. Depois de comer parte do croissant que haviam comprado, voltei ao meu quarto. Já estava separando a roupa de sair antes de tomar banho.

Alice apareceu mais uma vez. Acho que ela não queria que o momento da revelação terminasse na cozinha. Correu em minha direção e arrancou-me um abraço demorado, sendo atravessado por fungados e respirações difusas. Disse-me que continuaria me amando, não importa o que eu quisesse ser ou quem eu já era. Pediu perdão sem explicar especificamente o motivo e, depois, sentou na minha cama com os olhos projetados para a janela.

— Acho que a morte repentina da sua avó ainda mexe muito comigo. Cinco longos anos já se passaram e eu sinto que estou longe de superar o que aconteceu. Ela era a pessoa que mais me entendia, mesmo que Lúcia a achasse fria e seca. Eu não me importava, porque, quando mamãe demonstrava carinho comigo, eu sentia que era de verdade. Inclusive, não tinha te contado propriamente, só mencionei por alto, mas sua avó confessou que, em tenra idade, ela também estudava o mundo espiritual e o véu da vida por se sentir conectada com o que não podemos ver, mas sentimos mesmo assim. E eu tenho certeza que ela também tinha um dom, assim como Lúcia e eu. A dona Flora também tinha me contado sobre a sua obsessão com assuntos que envolviam o tempo e a ordem natural das coisas. Fez estudos que considero valiosos sobre formas de recuperar os anos perdidos com o toque da quinta parede entre o véu da vida sem que corrompesse o fluxo orgânico da natureza, sabe? Com ervas medicinais e algumas simpatias não tão convencionais. Mas, querendo ou não, ela sempre comentava sobre isso como se viesse de um tempo e lugar distantes, que estavam enterrados em suas memórias sem a intenção de revivê-los. Mamãe parece ter desistido de seguir com o que amava por algum motivo e não me apoiava quando disse que também queria estudar mais sobre, além de tentar criar formas de fazer contato com as almas que ficaram na intersecção da vida e da morte. Mas, mal Flora sabia, que eu só construí esse amor pelo contato harmônico com o oculto por culpa dela. Pela paixão que nutria em seus olhos desesperançosos, quando me contava uma coisa ou outra do que estudava tempos atrás. E sinto que alguma coisa morreu em mim depois que ela se foi, mas voltou a brilhar com a notícia da vinda de sua irmã, Miguel. E eu também quero recuperar o tempo que perdi com você. Quero voltar a ter o que tínhamos antes. Eu prometo que será diferente daqui em diante.

Apesar de toda aquela esquisitice mística, eu entendia o ponto em que minha mãe queria chegar. Flora irradiava uma energia quase palpável e, se você fechasse os olhos quando estivesse sob a sua presença, poderia sentir fechos de luz tremeluzindo de forma incessante na pele que habita.

O problema era que permanecia justamente assim na maioria das vezes: distante, opaca e intransponível para os outros. Por isso eu também conseguia entender a tia Lu. Vovó não permitia que todo mundo acessasse os seus pensamentos e suas memórias. Tive sorte e privilégio de conhecer um pouquinho do que se passava lá dentro, mas longe de realmente adentrar em seu passado. Não sabia nem o nome do meu avô. Não tinha uma foto sequer dele. Era como se nunca tivesse existido. 

Talvez, ele tenha feito algum mal para a vovó que tenha a traumatizado de alguma maneira – e eu nunca vou saber disso. E eu também nunca a pressionei para que me contasse. Ela tinha outras histórias mais interessantes e divertidas para me contar, que faziam brilhar os olhos do seu pequeno neto.

Flora passou os seus últimos dias sentada ao relento de uma varanda esquecida; afogou-se em si de uma vez por todas e não teve interesse de comprar a passagem de volta. Foi embora sem cerimônia nem qualquer pedido de adeus. Apenas entendeu que era o momento de se apagar e assim o fez.

Depois da conversa esfriar, Alice perguntou se estava tudo bem com o trabalho no apartamento de Renato. Ela tinha percebido que eu estava mais aéreo do que o de costume, além do semblante cansado que transparecia em meu rosto. Não soube responder, mas ela não insistiu. 

Também questionou o que, afinal de contas, estava acontecendo com o Renato, já que meu pai havia comentado por alto que ele estava abonando muitas faltas no trabalho com atestados médicos. E eu só me perguntei em silêncio: "por que Renato decidiu contar sobre a doença apenas para mim e omitiu a informação justamente de seu melhor amigo, que, por ventura, é o meu pai?".

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