Sexta, 27 de julho

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Ainda eram seis da manhã e não conseguia mais dormir, mas também não tinha forças para levantar da cama. De olhos fechados, torci para que aquele dia terminasse logo – ou talvez eu estivesse rezando para que até mesmo o ano inteiro fosse embora num sobressalto. O que eu estava sentindo era mais que cansaço, não conseguia descrever. Arrastei-me para o banheiro e não percebi quando liguei o chuveiro ainda com o pijama. Não importava. Deixei que a água me preenchesse. Pelo menos o vazio se ocuparia de alguma coisa.

Era o último dia de trabalho com o Seu Antônio. Não veria mais o Renato, ao menos não com tanta frequência. Despediria-me do apartamento, dos vinhos com gostos atípicos, dos sinais indecifráveis de Seu Antônio e, principalmente, do seu rosto ora apático ora aterrorizado. Era para eu estar feliz ou triste ou alguma coisa. Quem dera eu tivesse forças para isso, mas não vinha nada. Até pensei em dar alguma desculpa para Renato. Dizer que minha imunidade abaixou e preferi ficar em casa vendo alguns dos filmes repetidos que me traziam um conforto momentâneo.

Demorei um tempo no banho; tempo suficiente para que eu pudesse sentir a luz solar adentrando aos poucos pelo vidro manchado da janela. Vesti uma roupa leve, desci para a cozinha e fiquei um bom tempo tentando escolher o que preparar. Minha mãe, já toda arrumada para ir ao seu escritório particular, passou perto de mim apenas para dar um abraço e, depois, se afastou para pegar duas fatias de pão. Olhou-me novamente, agora com mais atenção, e ergueu o dedo para ar, pronta para falar alguma coisa.

— Você... tá bem, Miguel?

— Eu estou. Por que a pergunta?

— Você tá muito pálido. Adoeceu?

— Nã-não sei. Acho que eu estou me sentindo um pouco fraco, mas deve ser o cansaço.

— Já se acostume porque a vida de adulto que trabalha é assim. Ah, mas, pelo menos, o trabalho lá no Renato acaba hoje, não é? Aproveita para descansar bastante nesse final de semana. Tá sentindo alguma coisa outra além do cansaço? Você precisa controlar mais esse sono...

— Eu estou dormindo bem, não é isso. Só estou com essa fraqueza. Vai passar com um suco de laranja, mas, na real mesmo, eu não estou com muita vontade de ir no Renato hoje. Seria muito ruim da minha parte faltar no último dia?

— Claro que sim. — Meu pai surgiu na cozinha como se estivesse à espreita somente esperando o momento certo de aparecer. — Você precisa terminar o que começou; mostra que você é responsável e comprometido. É o último dia e acabou. Daí é só focar no segundo semestre na escola e se preparar para a faculdade. Na verdade, acho até bom você já ir procurando um emprego, porque você vai precisar dele a partir do ano que vem.

— Edu, acho que já está bom. Ele entendeu. Leva um dipirona caso sinta alguma dor enquanto tiver cuidando do Seu Antônio. Se ficar insustentável mesmo, então você volta para casa. Pode ser assim?

Alice chegou perto de mim e acariciou o meu cabelo durante algum tempo. Depois, pegou na minha mão esquerda e a massageou com os polegares. Era um movimento gentil que me deixou minimamente confortável, talvez até com uma sensação de estar protegido por alguém que me amava. Ainda assim, não conseguia sentir nada além disso. Era algo morno. Nem de mais nem de menos. Mas, infelizmente, voltei à estaca zero quando ela cessou com o movimento. Agora, Alice apertava os meus dedos. Olhei em seus olhos sobressaltados e vi pânico.

Ela se afastou para encostar as costas na mesa, que fica bem no centro da cozinha. Usou as duas mãos para cobrir a boca, mas nem isso foi o suficiente para abafar o grito que ecoou pela casa inteira.

— Miguel, você... NÃO. NÃO. VOCÊ NÃO VAI PARA LUGAR NENHUM HOJE. VAI FICAR EM CASA. Miguel, eu não vou deixar!

— Está tendo um ataque de loucura, mulher? O que diabos deu em você? — Meu pai começou.

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