3 anos depois

18 3 0
                                    

Aquela incessante pluma continuava a cair polidamente, mas parecia nunca chegar na superfície. Era sempre uma queda atrás de outra queda. Eu tentava não desviar o olhar para flagrar o momento exato em que veria aquela criatura inanimada deslizar pelo chão e parar de se movimentar de uma vez por todas. No entanto, um ruído abafado insistia em atrapalhar o meu plano.

Desviava o olhar sem ao menos perceber que havia feito isso. E, quando encarava a pluma novamente, era parecia estar suspensa na mesma altura de sempre, cambaleando na invisível força do ar. Uma jovem de branco, pela manhã, brincava com meus dedos enrugados e pedia para que eu os movimentasse no ritmo dos segundos que iam apenas do um ao três. 1, 2, 3... 1, 2, 3... Mas eu nunca conseguia, apesar de até tentar um pouco quando acordava de bom humor.

Os dias eram sempre escuros e difusos quando não me levavam para o passeio no sol, meu momento predileto. Assim, eu podia encontrar aquela mesma pluma para vê-la finalmente deslizando no chão. Só que isso nunca acontecia. Quando eu veria a pluma completar o seu movimento de queda? Eu queria tanto, é talvez o meu maior desejo. O maior desejo de todos. Ver a pluma cair. Vai ser um grande espetáculo quando acontecer. Pra ficar em cartaz no teatro! Ou melhor, no cinema! 1, 2, 3... 1, 2, 3...

O ruído continuava desviando o meu foco. Que ruído insuportável. Como ousa me desconcentrar? Eu estou tentando ver a pluma. A moça que brinca com meus dedos toda manhã não brincou com meus dedos nessa manhã. Ela, em vez disso, cometeu um crime horrível. Disse pra eu prestar atenção no ruído. A moça queria me distrair... Achei que ela fosse minha amiga.

"Seu Antônio, você tem visita!". Visita? O que é visita? Visitar... visitante... visita... se eu pensar nessa palavra cinco vezes seguidas ela começa a perder o sentido. Visita... 1, visita... 2, visita... 3! Mas eu só consigo pensar até o três.

— Mi-Miguel?!

Ah, então o ruído que ouvia é um nome, não é? Miguel. É bonito. Mais bonito que visita. Se eu pensasse em Miguel cinco vezes, será que esse nome começaria a fazer sentido?

Uma mão, que não é da moça de branco, acabou de encostar no meu rosto. Eu olhei pra pessoa que é a dona daquelas mãos. Era uma pessoa diferente, mas não tanto assim. Ela me lembrava um nome... Não Miguel, outro nome. Um nome mais suave ao se pensar. Tipo o ar, mas com o l no lugar do r. Al... Ali... Acho que é isso. E tem outra pessoa ao lado dela. É uma garota mais nova, mas posso apostar que, um dia, ela será uma grande bióloga. Ela tem vocação, está em seus olhos. Eu posso ver. Será que ela consegue me ajudar a entender o movimento eterno da pluma?

— Meu filho... espero que não tenha sido tarde demais, mas eu estou aqui agora, tá? Eu estou aqui agora.

Relógio de SangueOnde histórias criam vida. Descubra agora