...e eu não descanso enquanto não pegar aquela criatura ( parte 2 )

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A visita pra casa de Moema só aconteceu na segunda feira já que no sábado tanto eu quanto ela tínhamos compromisso com os namorados. Nem vou gastar minha saliva para falar do encontro merda que tive com o Ítalo. A família dele foi lá em casa e ficaram conversando junto com a minha sobre casamento e tudo mais.
   Fiquei na varanda o tempo todo, já que não queria nem ouvir a palavra “altar” saindo da boca dos meus pais. Eu era muito nova para decidir o rumo que eu queria levar para minha vida toda. Ainda mais que naquele momento eu tinha conhecido a Moema, que deixava o meu mundo de cabeça pra baixo.
   O Ítalo até tentou ir pra varanda também para conversar comigo, ver o quê eu tava achando de tudo mas eu caguei potes pra ele. Dava respostas curtas e diretas ao ponto, sem querer terminar com ele de vez, já que isso ia fuder comigo, com ele e com nossas famílias.

   - Eu só não tô muito afim de falar hoje, Ítalo. Apenas me deixe sozinha.
  
   Usava essa frase sempre quando ele vinha me perturbar para cortar o assunto pela raiz. Depois de dez vezes, eu achei que finalmente ele tinha entendido o recado.

   Fiquei ansiosa a manhã toda até chegar o momento que eu ia encontrar a Moema na saída e a gente ia pra casa dela. Era a primeira vez que eu ia na casa de uma “amiga”. Das outras vezes, elas sempre vinham na minha casa. Mas com a Moema era diferente. Ela era mais do que isso.
   Até as minhas outras amigas perceberam que eu estava diferente. Quer dizer, nem tão amigas assim, já que depois da Vivian ter me deixado sozinha na festa, eu já estava duvidando da minha amizade com ela e as outras meninas.
   Passei o intervalo todo fantasiando a tarde com a Moema que quando chegou a hora, meu coração quase saiu pela boca. Quando vi ela lá, na saída da escola, toda arrumadinha, de cabelo molhado e me esperando com uma margarida na mão, meu coração disparou tanto que minha arritmia quase atacou.
   “Calma, Cássia. Não se desespere. Você tá num local público.” Foi com esse pensamento que saiu direto da boca da minha analista que eu fui até a Moema.

   - Oi. - Eu disse quase que sussurrando de tanta vergonha.

   Porra, Cássia. Não foi assim que a gente tinha ensaiado começar o papo com a mina.

   - Oi! Trouxe para você! - Ela me entregou a margarida, que estava muito bem cuidada por sinal.

   Desde de que me entendo por gente, eu amava flores. Podia ser uma toda amassada no chão da rua, podia ser a mais bonita do jardim da minha vózinha Geralda. Nenhuma escapava das mãos da pequena Cássia.
   Só que teve um dia que eu fui na casa da minha vó e ela tinha um canteirozinho que ela plantava de tudo, inclusive margaridas. Lembro que fiquei tão encantada com a flor que já quis logo arrancar. Criança, né, normal. Mas a minha vó veio com toda a calma do mundo e me explicou que não podia arrancar as flores, já que matava elas, mas me contou que ela também amava margaridas porque lembrava da infância dela. A partir desse dia, tive um carinho especial por margaridas.

   - Que linda! Margaridas são minhas flores preferidas!
   - Sério? São as minhas também! Por isso resolvi trazer…
   - Que incrível! - Cheirei a flor. Margaridas tem um cheiro bem suave. - Eu amei…
   - Fico feliz que tenha gostado! De verdade mesmo. Bom, acho melhor irmos andando. Tô começando a ficar com fome! - Ela me estendeu a mão. - Vamos?
   - Tem certeza? As pessoas podem olhar e pensar coisas.
   - Tenho total certeza. Confia em mim.
   A Moema parecia não se importar com o quê as outras pessoas podiam falar de nós. Ia um monte de gente da minha igreja no ônibus que a gente ia pegar e mesmo assim ela não tinha medo de segurar minha mão em público. Numa realidade em que a ditadura militar estava matando centenas de pessoas apenas por amarem quem elas quiserem, a Moema não se sentiu coagida por nem um minuto.

   Fomos sentadas lado a lado, no último banco do ônibus, com a minha cabeça no ombro dela e os dedos entrelaçados. Aquele gesto me trazia tanta paz, tanta tranquilidade que parecia que só tinha nós duas ali, mesmo o ônibus estando cheio.
   Não trocamos uma palavra durante o trajeto todo. Apenas ficamos ali, em transe no tempo. Ela fazia carinho na minha cabeça, bem de levinho. Eu só conseguia ficar parada ali, com a margarida em minhas mãos. Agradecia mentalmente a minha vózinha por ter me ensinado a gostar de margaridas.
   Eu tinha tido um dia cansativo na escola. Provas finais era o pior período de todos. Com o carinho que a Moema fazia na minha cabeça, eu comecei a ficar sonolenta. Até que entrei em um estado que eu dormia, mas tinha consciência de tudo que acontecia em minha volta. Nunca descobri se era verdade ou invenção da minha cabeça, mas pude ouvir ela sussurrar um “Eu te amo” e dar um leve beijinho na minha cabeça. Ela pode não ter visto, mas eu dei um sorriso feliz.

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⏰ Última atualização: Nov 02 ⏰

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Um anjo caído: a história de Cássia Eller - volume 1Onde histórias criam vida. Descubra agora