Capítulo I: Silêncio

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Kayin registrou seu corpo recuperando, aos poucos, os sentidos, sua consciência voltando de maneira vagarosa, arrastando-se nas extremidades de sua mente. Primeiro, ele sentiu o cheiro forte de fumaça. Seus olhos se abriram de sobressalto, procurando por um incêndio descontrolado. No entanto, a claridade alaranjada revelou os contornos de uma lareira, o que tranquilizou a mente do rapaz o suficiente para que ele notasse que a fumaça tinha um cheiro profundo e terroso. "Sofisticado como carvalho", ele pensou.

A luz preguiçosa do fogo espalhou-se aos poucos, revelando primeiro sombras de um ambiente que não era familiar ao jovem. Elas dançavam pelo lugar, existindo no espaço negativo entre os móveis. Móveis caros, ele percebeu.Uma enorme poltrona branca, com detalhes florais dourados e vermelhos. Um biombo que parecia retratar as imagens de navios chegando a uma praia tropical. Agora mais consciente, Kayin percebeu que a lareira em si parecia uma obra de arte. Esculpida no que deveria ser mármore, mulheres ladeavam, como colunas de um templo grego, o fogo que preenchia o ambiente de calor e conforto.

A cama em que ele estava era coberta por peles grossas e pesadas. O toque era estranho ao garoto... E esse desconforto pareceu se estender pelo ambiente. Toda aquela sofisticação parecia falsa, como o aroma delicado de uma planta carnívora. O espaço parecia prestes a devorá-lo.

O crepitar do fogo parecia cada vez mais alto. O silêncio do mundo externo fazia com que ele respirasse com cuidado. Mesmo assim, seu coração batia contra o peito. A memória do homem misterioso na porta de sua casa saltou para sua mente.

O medo, novamente, foi um aliado indispensável para o jovem, ajudando-o a levantar-se rapidamente e deixando que os cobertores pesados que o cobriam caíssem. Ele se surpreendeu um pouco quando a sala não girou ao ficar de pé, e, dessa vez, percebeu que realmente estava descansado ao acordar.

Ainda sentia a fragilidade do corpo, mas também a presença de seus membros, despertos e prontos para correr. Kayin sorriu ao lembrar da corrida que havia ganhado ainda na última semana, contra um dos garotos metidos do seu colégio. A memória o reconfortou, como um abraço familiar.

No entanto, o medo ainda era tão intenso que esse sentimento logo foi engolido pelo pânico que parecia estar permanentemente alojado em seu peito. Seus passos pelo chão de madeira nobre eram cuidadosos.

Seus pensamentos foram interrompidos quando ouviu a porta ranger. O coração do garoto acelerou novamente. Suas mãos agiram por conta própria e, com passos longos, ele cobriu a distância até a lareira para pegar o ferro de atiçar, que estava em um recipiente ao lado.No instante seguinte, um rapaz não muito maior do que ele entrou no cômodo. Antes que Kayin pudesse absorver todos os detalhes do novo invasor, levantou o ferro de atiçar na altura dos olhos azuis do garoto, que se arregalaram.

Usando o espanto do recém-chegado como vantagem, Kayin se espremeu entre ele e o batente, correndo pelos corredores do lugar desconhecido. Ser menor que o jovem louro pareceu ser uma vantagem naquele momento.

"N-Não, espera!", o garoto disse, virando-se sobre os próprios calcanhares para alcançar Kayin. "Não deixem ele sair!"

Kayin ouviu portas abrindo em algum lugar, mas não se deu ao luxo de se atentar o suficiente para descobrir se alguém mais o seguia. Os corredores luxuosos do lugar passavam como um borrão em sua visão periférica. Os quadros requintados, as diversas portas, o cheiro de sofisticação e dinheiro gasto em coisas fúteis inundavam suas narinas. Tudo era ignorado pelo cérebro desesperado de Kayin.

O medo pulsando em suas veias o impedia de prestar muita atenção aos protestos incessantes de seus músculos cansados. Seu abdômen doía, como se alguém o tivesse apunhalado em algum momento durante sua tentativa de fuga. Mas ele não tinha tempo para se preocupar com sua respiração. Todas as vezes que o ar frio invadia seus pulmões, a sensação de alívio era tão intensa quanto o desconforto de se afogar. E teria que ser assim até que ele saísse daquela casa. Até que encontrasse qualquer lugar que não fosse ali. Naquela casa estranha, com aquele garoto estranho.

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⏰ Última atualização: Nov 05 ⏰

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