Pulou da cama antes do despertador tocar, ainda estava escuro. O equipamento fotográfico estava num canto do quarto, previamente arrumado. Foi conferir, ali estava sua teleobjetiva 600 mm, própria para fotografia de vida selvagem, montada numa câmera Canon R8. Na mochila preta também havia um binóculo, flanelas para limpar lente, capa de chuva, outra lente, barras de cereais e dois pacotinhos de paçoca. Fez um café, pegou a mochila e a câmera, e seguiu para a sua velha caminhonete 4x4. Rompeu o final da madrugada pelas estradas rurais do município em direção ao lago já velho conhecido, num lugar silencioso e longe de tudo. Lá havia pássaros, muitos pássaros que iriam posar para suas fotografias. Pássaros de todas as cores e tamanhos, de cantos melodiosos. No caminho, ele vislumbrou as primeiras luzes daquela manhã, luzes tímidas comparadas com a escuridão ainda predominante. Tudo indicava que o dia seria com um céu nublado, talvez até com uma leve chuva. O carro balançava ao passar pelos buracos da precária estrada rural. Do nada, cruzou a sua frente, em velocidade espantosa, uma enorme lebre, comum por aquelas bandas. O bicho parecia assustado, provavelmente incomodado com o farol do carro, entrou na mata e desapareceu.
Ia devagar pela estrada, aproveitando a paisagem e o amanhecer que também chegava devagar. Aquilo tudo era bom demais, todas às vezes que se metia naqueles matos atrás de pássaros para fotografar sentia uma satisfação indescritível. Não era de hoje essa história de capturar imagens de pássaros, mas ultimamente se tornou coisa seria, coisa de não ver a hora de chegar o final de semana ou as férias para sair por aí fotografando os bichinhos. Ainda seguia pela estrada e num momento de descuido, os pensamentos desordenados e indesejados vieram. Consequência da sua mente ansiosa e muito barulhenta. Prazos, remorsos, relatórios, decepções, boletos... Tudo muito contundente como um soco no estômago. E de fato, após muita atividade negativa de sua mente, sucedia-lhe, quase sempre, uma forte dor de estômago. Mas logo a mente se acalmou e pôde, agora, se voltar à passarinhada.
Chegando ao lago, colocou a mochila nas costas e pegou o equipamento. Ajustou a câmera para o modo "prioridade de velocidade", testou o foco e conferiu outras configurações. "Tudo certo, vamos lá". Seu ouvido já acusava o canto de vários pássaros e isso o motivava. Pretendia fotografar várias espécies, como de costume, mas queria uma em especial, o surucuá-variado. Ave multicolorida de cauda longa e de canto belíssimo, bem característicos de nossas florestas. Foi caminhando beirando a água e logo avistou bem-te-vis e algumas gralhas. No lago, como sempre, patos-do-mato, frangos-d'água e, por cima das plantas aquáticas, o serelepe jaçanã. Claro, não podiam faltar os brigões quero-queros, sempre passeando nas partes com mato mais baixo da margem do lago. Viam-se também canários-da-terra, tietingas e tico-ticos. Muitas fotos tiradas (bendita fotografia digital). No cume de uma árvore à frente da mata fechada no final do lago, imponente, um gavião-belo observava a região com certo ar de serenidade. Ave de grande porte e muito exuberante, porem esquiva, não sendo fácil fotografá-la; mas deu certo. Em meio a todo aquele verde, floresta, lago, pássaros, céu azul, enfim natureza pura e exuberante, em meio aquela solidão contemplativa, divagou sobre o sentido da vida e a proximidade com a divindade. "Os sons da natureza poderiam ser a voz de Deus, aí Deus seria a própria natureza, tipo aquela história do Deus de Spinoza". "Besteira isso" retrucando ele próprio. Parou de filosofar quando avistou um udu-de-coroa-azul: "caraca, que ave linda e que sorte a minha". Foram vários cliques, uns mais belos que outros, uma verdadeira festa de imagens.
Seguiu a trilha adentro, mas nada do surucuá. Uma pequena queda d'água do rio que alimentava o lago, fazia um barulho muito alto, parecido com uma cachoeira. Som reconfortante, barulho silencioso, natureza exuberante. Confundia-se com os sons dos pássaros... tudo muito prazeroso. Tinha também o cheiro, cheiro bom de floresta, aroma amadeirado, misturado com cheiro de terra molhada e de ervas variadas, "nenhum perfume criado pelo homem traz sensações como essas". Seu olhar atento logo viu uma ave diferente, numa grande árvore à sua frente. Com ajuda do binóculo, viu com mais clareza e abriu um sorriso enorme: O belo surucuá-variado estava diante dele, pronto para ser fotografado. Sacou rapidamente a câmera e fez pontaria, ajustou o foco e quando conferia as configurações o bicho voou. E voou para bem longe. Sumiu de vista. "Voltaria, talvez...", desejou. Olhou para todas as direções. Aquietou-se para ver se conseguia ouvir seu canto, porém, nem sinal do bicho.
A passarinha foi boa, de certa forma, mas sem surucuá. O sol já estava alto, quase a pino. Tomou um gole de água, voltou para a caminhonete e partiu para casa. Missão cumprida.