A garota de cabelos flamejantes caminhava de um lado para o outro na pequena cozinha do apartamento que dividia com o pai, o chão de madeira rangendo sob seus passos inquietos. O espaço era modesto: paredes brancas marcadas pelo tempo, cortinas simples de estampa floral adornando janelas de vidro escurecido, enquanto a sala, logo ao lado, exibia um sofá macio que ocasionalmente a acolhia como um velho amigo. Uma TV, esquecida e desligada há dias, completava o cenário.
Apesar da evidente desorganização, ela gostava da sensação de paz que aquele lugar transmitia. Claro, podia culpar a rotina caótica de ambos os residentes pela bagunça. Ela sabia, ou ao menos acreditava, que sua falta de organização era um traço herdado. Mas, por vezes, se perguntava se não era apenas uma característica pessoal.
"Claro, porque bagunça é algo que a gente carrega no DNA," pensou, com sarcasmo.
A ansiedade já dominava seu corpo, infiltrando-se em suas veias como oxigênio, tornando impossível se concentrar em qualquer coisa. Até seu plano para o jantar terminou em desastre, com a carne queimando na frigideira.
O pai, ao sair do quarto, notou a fumaça preenchendo o apartamento. Sabia que sua filha não era descuidada e, embora entendesse onde a mente dela estava, preferia ignorar. Com um olhar reprovador e uma sobrancelha erguida, caminhou lentamente pela madeira do piso, que estalava sob seus passos pesados, até desligar o fogo que aquecia a comida já queimada.
— Giza, querida, por que ainda não está pronta? Seu turno começa em 30 minutos — pronunciou ele, consultando o relógio caro no pulso.
Giza se afastou para a janela, abrindo-a para deixar a fumaça sair, e respondeu com um leve suspiro:
— Porque não vou mais, pai. Quem garante que ele... — Ela hesitou, mas não precisava completar a frase; o pai já entendia. — …vai me deixar continuar trabalhando? Melhor já me acostumar com o pior, não acha?
Ele soltou uma gargalhada, tentando aliviar a tensão, mas Giza apenas se encolheu, como se o universo estivesse determinado a destruir qualquer possibilidade de ela se sentir inteira. Seus dedos se moviam nervosamente sobre a pele de seu braço.
— Filha, eu adoraria vê-lo tentar te impedir… e falhar miseravelmente.
Com uma expressão terna, ele tocou o rosto da filha, que desde a reunião na Seção Leste naquela manhã parecia tão pálida quanto um fantasma. Entendia sua apreensão, mas sabia que em algum momento ela precisaria aceitar as circunstâncias — ou enfrentaria um destino que ele considerava pior que um casamento. Ele fechou os olhos por um instante, enquanto lembranças dolorosas invadiam sua mente, quase a ponto de fazê-lo desabar sob o próprio peso.
Giza ergueu os braços em um gesto de cansaço e retirou-se para seu quarto, fechando a porta com um estalo pesado. Atirou-se na cama e pegou um aparelho de comunicação arredondado e antiquado, que lembrava os celulares de antigamente. Com um toque para a leitura de digital, acessou a lista de contatos e, sem pensar muito, tocou o número da amiga Kira. Após três toques, ouviu finalmente a voz familiar do outro lado da linha, acompanhada de um chiado baixo.
"Giza, diga rápido, estou ocupada."
A garota de cabelos vermelhos como chamas intensas bufou. Sabia que, depois do casamento, sua vida poderia se transformar justamente naquilo que mais temia: um eterno ciclo de ocupações domésticas, dividindo-se entre filhos, marido e uma casa para comandar. Não, não era isso que ela queria. Preferia lidar com pacientes à beira da morte ou até aqueles com feridas infestadas — qualquer coisa parecia mais suportável do que cuidar de crianças que, com certeza, acabariam com sua sanidade em tempo recorde.
"Fui escolhida para o pareamento genético. Meu pai assinou os papéis esta manhã." disse Giza, sem rodeios.
Ela quase podia ver o "A" ou "O" de surpresa que formava-se na boca de Kira. Imaginava os olhos esverdeados da amiga arregalados, enquanto sua mão se erguia para cobrir a boca, abafando uma reação que nem mesmo ela conseguia disfarçar.
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A um passo do caos
FantasyEm um futuro distópico, Giza está condenada a um destino que não escolheu: um casamento arranjado com um homem designado para perpetuar a humanidade. Prisioneira da Arca, uma vasta estrutura subterrânea que escraviza suas memórias e seu corpo, ela s...