O silêncio era quase absoluto. O vento carregava o cheiro da morte e da decomposição que já não se via mais, apenas ossos secos espalhados por toda parte. As ruas de Belo Horizonte, outrora caóticas e cheias de vida, agora pareciam um cemitério a céu aberto.
Danilo empurrava seu skate, os olhos atentos ao entorno. As rodas rangiam contra o asfalto irregular, ecoando como um lembrete de que eles ainda estavam vivos. Ao seu lado, Vinícius carregava uma mochila remendada, o olhar fixo no chão, tentando evitar os restos que se espalhavam pelo caminho.
— Esse silêncio me dá nos nervos — murmurou Danilo, quebrando a monotonia. — Parece que a cidade tá segurando a respiração, esperando a gente tropeçar em alguma coisa.
Vinícius ajustou os óculos, respirando fundo antes de responder. — Acho que prefiro o silêncio. Já foi barulhento demais... e doloroso demais.
Eles chegaram a um supermercado BH parcialmente saqueado. A porta de vidro estava estilhaçada, e o chão estava coberto de pedaços de prateleiras e pacotes rasgados. A luz do sol entrava em feixes, iluminando o caos.
— Tá, vamos procurar comida. Leva só o que a gente pode carregar, beleza? — Danilo disse, pegando um pedaço de cano enferrujado que encontrou perto da entrada. Ele deu uma olhada para Vinícius, percebendo o nervosismo no rosto do namorado. — Ei, tá tudo bem. Se aparecer alguma coisa, eu cuido.
Vinícius acenou com a cabeça e começou a procurar entre os destroços. Enquanto revirava pacotes, Danilo não conseguiu evitar. — Às vezes, eu fico pensando nos meus irmãos. Eu odiava aqueles dois idiotas. Eles eram tão... insuportáveis.
Vinícius parou, hesitando por um instante. — Mas você sente falta deles?
Danilo riu, mas o som parecia vazio. — Sinto, mas não do jeito que deveria. Não sei, é como... eles sempre faziam da minha vida um inferno, mas agora que não estão aqui, é estranho. Eu fico imaginando... será que todo mundo foi pro céu e a gente tá preso aqui porque é o inferno?
— Para com isso. — Vinícius interrompeu bruscamente, virando-se para encará-lo. Seus olhos estavam mais sérios do que Danilo já tinha visto. — Eu não quero pensar nisso. Não importa. O que importa é o agora, a gente, e continuar respirando.
Danilo levantou as mãos, fingindo rendição. — Tá, tá bom. Sem papo de religião. Mas não vou prometer que não vou filosofar sobre isso outra hora.
Vinícius balançou a cabeça, tentando esconder um sorriso pequeno. — Você é impossível.
— E você me ama por isso. — Danilo piscou para ele, voltando a vasculhar o que restava do corredor.
No fim, eles encontraram alguns pacotes de macarrão instantâneo e uma lata de feijão. Era pouco, mas suficiente para mais um dia. Enquanto saíam do supermercado, o sol começava a se pôr, tingindo os ossos espalhados pela rua com um tom dourado. Danilo pegou a mão de Vinícius, apertando-a levemente.
— Ei, só pra constar... eu também amo você. Mesmo nesse inferno.
Vinícius apertou a mão de volta. — Eu sei. E é isso que me faz continuar.
E juntos, eles seguiram pelas ruas desertas, enquanto o mundo morto ao redor deles parecia, por um momento, menos solitário.
A ix35 avançava lentamente pela estrada de terra, sacudindo a cada buraco que Vinícius não conseguia evitar. Ele segurava o volante como se sua vida dependesse disso, os olhos fixos no caminho à frente, enquanto Danilo estava reclinado no banco do passageiro, com um pé apoiado no painel.
— Você tá indo bem, Vini. — Danilo comentou, olhando para ele de lado.
— Tá falando isso só pra me animar. — Vinícius resmungou, desviando por pouco de uma pedra grande. — Eu nunca aprendi a dirigir. A única vez que fiz algo parecido foi andando de kart com meu primo nos Estados Unidos, e isso nem conta.
Danilo deu de ombros, rindo. — Pelo menos o kart deve ter te ensinado a não atropelar nada... mais ou menos.
Vinícius lançou um olhar de reprovação, mas não disse nada. Depois de alguns minutos, a casa apareceu ao longe, uma construção de tijolos de dois andares cercada por árvores e uma cerca baixa. Apesar do apocalipse, o lugar parecia surpreendentemente intacto.
Eles pararam em frente à entrada, e Danilo desceu primeiro, puxando a mochila com o que haviam conseguido no supermercado. Vinícius desligou o carro e saiu logo atrás, olhando ao redor com certa apreensão.
— Sempre achei essa casa grande demais. — Vinícius comentou enquanto eles caminhavam até a porta.
— Grande demais, mas perfeita pra gente. — Danilo respondeu, abrindo a porta.
O interior da casa estava arrumado, exceto por uma fina camada de poeira em alguns móveis. Era claro que Vinícius havia tentado manter as coisas organizadas. Os porta-retratos estavam todos virados para baixo, exceto por um que Danilo havia insistido em deixar de pé: a foto de sua família.
Cachorros apareceram correndo de dentro da casa, abanando os rabos e latindo animadamente. Vinícius imediatamente se ajoelhou para acariciá-los, o sorriso mais sincero que Danilo já tinha visto desde que tudo começou.
— Eles tão mais felizes que a gente. — Danilo brincou, cruzando os braços enquanto observava.
— Eles não sabem o que aconteceu. Talvez isso seja bom. — Vinícius respondeu, segurando um dos filhotes no colo.
Com a energia gerada pelo gerador que haviam instalado no porão, Vinícius foi para a cozinha preparar o jantar. Ele colocou água para ferver e abriu as latas de feijão que haviam encontrado. O cheiro simples da comida era reconfortante.
Enquanto Vinícius cozinhava, Danilo cuidava de alimentar os cachorros. Depois de alguns minutos, eles se sentaram à mesa, comendo em silêncio.
— Você acha que algum dia vai melhorar? — Danilo perguntou, quebrando o silêncio.
Vinícius suspirou, encarando o prato vazio. — Não sei. Mas enquanto a gente estiver aqui, juntos... acho que dá pra continuar.
Depois de terminar a refeição, eles subiram para o quarto. Era um espaço simples, mas confortável, com uma cama grande e roupas empilhadas em uma cadeira. Danilo fechou a porta e, sem dizer nada, se aproximou de Vinícius. Ele segurou o rosto dele com cuidado, puxando-o para um beijo.
Era um gesto carregado de emoção, tentando trazer um pouco de normalidade para aquele mundo quebrado. O beijo começou suave, mas logo se intensificou. Danilo passou as mãos pelas costas de Vinícius, aproximando-o mais.
Mas então Vinícius recuou de repente, afastando-se. Ele virou de costas, os ombros tremendo.
— Eu... eu não consigo. — Ele murmurou, a voz embargada.
Danilo deu um passo à frente, estendendo a mão, mas parou quando percebeu que Vinícius estava chorando. Ele se sentou na cama, puxando os joelhos para o peito.
Antes do apocalipse...
— Eu preciso te contar uma coisa. — Vinícius disse, nervoso, enquanto mexia no canudo da bebida em uma lanchonete. — Eu sou... assexual. Não é que eu não goste de você. Eu te amo. Só... é complicado pra mim.Danilo segurou a mão dele, firme. — Ei, tá tudo bem. Eu te amo do jeito que você é. Nada vai mudar isso.
De volta ao presente...
Danilo se sentou ao lado dele, passando um braço ao redor de seus ombros.— Tá tudo bem, Vini. — Ele disse suavemente. — A gente não precisa fazer nada que você não queira. Nunca precisamos.
Vinícius virou o rosto para ele, os olhos vermelhos. — Eu só... eu quero que você seja feliz. Mas...
Danilo interrompeu, segurando o rosto dele. — Você me faz feliz. Você tá aqui. É isso que importa.
Eles ficaram ali, abraçados, enquanto o silêncio do mundo exterior parecia, por um momento, menos sufocante. Naquele quarto, eles tinham o que era mais importante: um ao outro.