Habite-se

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"Quem eu era antes
Me esforço pra lembrar
Vejo um estranho no espelho
Que precisa se encontrar"

...


A pandemia tinha transformado tudo na vida de Caio em um piscar de olhos. Ele ainda lembrava do dia em que as aulas presenciais foram suspensas. A princípio, tinha achado que seria bom — uma pausa na rotina cansativa, uma desculpa para ficar em casa sem culpa. Mas, com o tempo, a sensação de alívio deu lugar ao tédio, e o isolamento trouxe algo que ele não estava preparado para enfrentar: ele mesmo.

No começo, a quarentena parecia igual para todo mundo. Ficar o dia inteiro em casa, assistir a séries, reclamar das aulas online, fugir das reuniões no google met. Mas, para Caio, havia algo diferente. Ele passava mais tempo sozinho, pensando, questionando, e uma palavra começou a se formar na sua cabeça, de mansinho, como se sempre tivesse estado ali: trans.

Ele já não se sentia confortável com o nome que usava antes, nem com a forma como as pessoas o tratavam. Começou a ler sobre o assunto, assistir a vídeos, seguir perfis nas redes sociais. Cada história que via parecia um pedacinho do quebra-cabeça que ele estava tentando montar dentro de si. Foi um processo longo, cheio de dúvidas e momentos de negação, mas, no fim, ele percebeu que não dava mais para ignorar quem era.

Ele escolheu o nome Caio por acaso, numa dessas noites em que não conseguia dormir e ficou testando nomes na cabeça. Quando pensou em “Caio”, alguma coisa simplesmente encaixou. Era simples, forte, e parecia certo. No começo, teve medo de contar para alguém. Mas quando falou para os amigos mais próximos, eles reagiram com tanto apoio que Caio quase chorou de alívio.

Mas nem tudo era tão simples. Sua mãe ainda estava tentando entender. Não era como se fossem ruins ou desrespeitosos (um pouco, mas ele preferia pensar que não), e às vezes parecia querer ignorar o que ele tinha contado. Sempre dizia que "precisava de tempo", o que só fazia Caio sentir que estava preso em uma espera sem fim.

E, para piorar, a pandemia trouxe mais uma bomba: a família decidiu se mudar para outro estado.
— Isso é loucura, mãe! A gente vai largar tudo aqui? Meus amigos, minha escola, tudo? — Caio tinha argumentado na época, tentando soar mais calmo do que realmente estava.

— Não tem o que discutir, filho. A vida em BH tem me adoecido, e ir para o Espírito Santo é o que a gente precisa agora. Vai ser bom pra todo mundo. — A mãe respondeu, sem ceder nem um pouco.

Caio odiou aquilo. Ele já estava enfrentando tanta coisa internamente e, agora, ainda tinha que abandonar tudo o que conhecia. Foi como se o chão sumisse debaixo dos pés.

[...]

A mudança aconteceu rápido. Em questão de semanas, ele estava em uma cidade nova, com gente nova, em uma escola onde ninguém sabia quem ele era de verdade. Seus amigos ficaram para trás, e, embora tentassem manter contato por mensagens, não era a mesma coisa. A sensação de solidão era sufocante.

Nos primeiros meses, ele quase não saía do quarto. Quando não estava assistindo às aulas online, ficava enrolado no cobertor, ouvindo música ou escrevendo no caderno que mantinha escondido. Escrever era a única coisa que fazia o mundo parecer um pouco menos pesado.

Ele tentava se adaptar, mas era difícil. A cidade nova parecia pequena demais, cheia de gente que o olhava estranho, como se pudesse ver que ele não se encaixava ali. Os professores mal lembravam seu nome, e os colegas de sala pareciam distantes.

Ainda assim, aos poucos, ele começou a encontrar pequenas maneiras de se sentir mais como ele mesmo. Cortou o cabelo curto e deixou os cachos soltos, apesar dos olhares curiosos da família. Comprou roupas novas com o dinheiro que tinha economizado e começou a usar o nome Caio sempre que podia, mesmo que ainda não fosse oficialmente reconhecido.

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⏰ Última atualização: Nov 18 ⏰

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