O que um cínico mais quer

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Era por volta das uma e meia da manhã e ao invés de estar deitada na minha cama como a boa moça que sou, eu estava lá, vagando pelos corredores estreitos do meu bairro, carregando um par de sacolas pretas onde tinham álcool o suficiente para fazer um chevette velho voltar à vida e ganhar a fórmula um numa arrancada só. E o por que de logo eu, a tal da boa moça, que fui encarregada de sair do conforto de casa e pegar esse coquetel generoso? Simples:

— Uma festa não é uma festa sem álcool; Jesus que disse isso, eu acho — a voz de Pedro ecoou na minha mente junto de uma moleza da embriaguez.

— Foi vinho, Pedro; foi vinho — resmungou sem lá quem, mas claramente estava muito bravo com isso e não brincando, então acho que foi o Lucas, o tal do "bom moço".

— Ah, tanto faz; o importante é não ficarmos aqui só à base de água — Retrucou Pedro, dando de ombros e se espreguiçando no encosto do sofá. Foi então que ele parou, pensou um pouco e ficou me fitando com um olhar cínico; e foi aí que eu vi que viria merda — Quer dizer, só alguns estão à base de apenas água — Ele frisou firmemente esse "apenas" com uma segurada forte entre as sílabas. "A-penas água".

Revirei os olhos instintivamente, o que foi o mesmo que confessar a culpa.

— Pera aí... — Maria, a pessoa que eu menos gostaria de ouvir se intrometendo na conversa, entrou no papo como que sedenta por uma fofoca das boas — Fala sério, gata? — Eu virei a cara pro outro lado, o que, francamente, foi uma péssima escolha — Não creio! Me fala tudo, tudo, absolutamente tudo! Quem é? Quando? Quantas vezes? Foi bom? Ah, que pilantra você! Sua...

— Eu não falei que fui eu... — Cuspi aquelas palavras com um desconforto genuíno.

— Ei, ei, ei, não vale mentir — eu te mato, Pedro.

— Isso aí! E por que o Pedro sabe disso e eu não?

Naquela altura, aquela minha sala de estar mais parecia uma mesa de interrogatória; a luz alta do ventilador de teto era a lanterna focada contra minha cara, dissuadindo meus sentidos contra a luz; Maria, se debruçando por sobre a mesa de centro, era o policial malvado que cuspia na minha cara meus crimes até que eu de fato confessasse aquele meu maldito pecado; já Pedro, ele era o do tipo calado, que ficava longe num canto, mas sempre que abria a boca era só quando via que o seu comparça havia ficado sem munição; e eu no meio daquilo, recebendo as cuspidelas de uma, as acusações de outro e... bem, pelo menos tinha Lucas, que teve o bom senso de ficar calado e não nos entregar, mesmo parecendo à beira de um colapso mental.

Suspirei, erguendo as mãos em rendição: — Antes de tudo, como que você sabe disso, ein, Pedro? — Cartas na mesa; eu havia me entregado.

— Sabia? — Ele dissolveu toda a expressão do rosto num enorme risinho convencido, como se seus músculos estivessem resistindo ao máximo para não ficarem assim antes — Queridinha, eu não sabia! Tava só jogando um verde.

Merda. A sala ficou subitamente em silêncio.

— Para tudo! Então realmente é verdade! Pedro, seu gênio! — Maria ergueu a mão e aquele panaca pegou a deixa, dando um hi-five triunfante — Não deixa passar uma, muleque!

Ele levou a mão até o bigode e começou a puxá-lo de leve com os dedos — Elementar, cara Watson. As pistas estavam lá; eu só as juntei.

— Claro, claro — Maria teria se juntado à interpretação de Sherlock se não estivesse ocupada demais me encarando com aquele olhar pidão — Agora... e quem seria o...

— Nem vem! — Me levantei num salto — Eu só perguntei o porquê dele...

— Na, na, na, na... — Pedro sibilou, movendo os dedos junto à fala feito o personagem de anime que ele gostaria de ser — Você disse, segundo os meus registros, "Como que você sabe disso?", o que não tem nada a ver com "Por que você acha isso?" — E lá estava mais uma vez aquele olhar cínico que eu detesto.

HISTORIETAS DE HORROR [série de contos]Onde histórias criam vida. Descubra agora