Primeira Parte

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Rússia-Brasil :
( Segundo Capítulo)
Continuação...

O FRIO QUE FAZIA EM RIGA, no inverno, não era brincadeira. A temperatura chegava a cair abaixo dos trinta graus centigrados, e nesses dias nós, crianças, ficávamos presas em casa, no apartamento, como passarinhos na gaiola. A gente só podia ficar espiando o lado de fora pelas vidraças enfeitadas por caprichosos desenhos de cristais de geada , que a gente esfregava para formar uma clarabóia transparente. As vidraças eram duplas, uma do lado de fora, outra dentro, com um espaço entre as duas, e ainda uma beirada que dava pra rua , um "aparador" que a neve acolchovada de branco fofo e festivo. Nessa espécie de prateleira, mamãe colocava maças para assar no frio. Sim, porque o frio ali não era sequer como o de uma geladeira - coisa que, aliás, nós nem tinhamos em casa: era mais freezer, e durante a noite gélia as maças encolhiam, ficavam murchas e escurinhas, "assadas" naquela frisagem. Aí, mamãe tirava as maças e coloca sobre os radiadores de aquecimento central, aonde elas se descongelavam e se transformavam em uma deliciosa sobremesa.
Quando o frio não era tanto , só uns suportáveis oito ou dez graus negativos, a gente podia sair pra passear durante uma horinha. Era gostoso sair para a neve , acompanhados pela nossa fraulein, a nossa governanta alemã, respirar o ar geladinho, passear no parque puxando o nosso trenozinho, descer com ele as rampas suaves do jardim público. Ou patinar na lagoa do parque, dura de gelo, deslizando na sola das próprias botas. Só que o nosso prazer era um pouco prejudicado pelo excesso de agasalhos que éramos forçados a usar. Naquele tempo não tinhas - e nem havia- agasalhos leves e quentes ,de tecidos sintéticos, como agora. O que nos faziam vestir eram camadas e camadas de roupas grossas de lá, malhas sobre malhas,tweeds pesados, botas forradas de feltro, casacos impermeáveis acolchoados de algodão, gorros de pele cobrindo a orelhas, chales e cachecóis enrolados no pescoço, luvas "de dedão" que tolhiam o uso dos quatro dedos restantes, e sei lá oque mais. Daí, só com os olhos e a ponta do nariz livres, a gente ficava mais durinho de movimento do que boneca de pano recheada de macela, feito a Emília, de Lobato, antes de virar quase-gente. Mesmo assim dava pra brincar de batalha de bolas de neve ou de construir um homem de neve com olhos de carvão, boca de graveto e nariz de cenoura. Mas de vez em quando acontecia que a ponta do nosso próprio nariz começava a ficar congelada , e daí a gente pegava um punhado de neve e esfregar com força o nariz branco ,duro e amortecido até arde e ele ficar vermelinho e sensível de novo. - uma dorzinha até bem-vinda. Também era gostoso quebrar as estalactites de gelo que formavam em calhas e beiradas, para chamá-las feito pirulitos , para horror da Fraulein. Certa vez ela me flagrou fazendo isto, e me admoestou solenemente, em alemão: " Como é que você, uma menina deste tamanho , que logo vai fazer seis anos pode se comportar assim !" e que eu fiquei deveras envergonhada desse pecado, na minha avançada idade de cinco anos e meio...
Já em casa, no apartamento aquecido pelos radiadores onde circulavam a água muito quente de caldeira central, fazia ás vezes até calor demais, e nóis, crianças, podíamos brincar á vontade.
E como brincávamos ! As horas do dia não eram suficientes para tanta brincadeira, e o comando de ir para a cama era invariavelmente saudado pelos mais veementes protestos, só mitigados pela perspectiva das histórias que o papai nos contava sempre na hora de dormir. Ele era um grande contador de historia e tinha um repertório que parecia interminável. Eram histórias fantásticas e histórias verdadeiras tiradas da literatura e da imaginação, da história do mundo e da mitologia, da Bíblia, do folclore e da poesia. Esta última, então, papai sabia "dizer" como um verdadeiro artista, a gente ficava encantada e emocionada, e queria ouvir mais e sempre mais. Tudo isso me dava uma vontade crescente de ler, os livros me fascinavam desde muito cedo. Não foi atoa que aprendi a ler - brincando com bloquihos de letras , com pouco mais de quatro anos de idade. E nunca mais parei.

Transplante De MeninaOnde histórias criam vida. Descubra agora