Asfixia (conto)

417 12 7
                                    

Carlito apertou o botão negro no corpo da câmera robusta e quase foi possível ouvirem um click metálico e agradável. Por um milésimo de segundo, Carlito irritou-se por não ter de fato escutado o ruído, mas não passou de um pensamento fugaz. Afinal, era carnaval e ele já tinha preparado sua paciência para não ouvir nada além dos batuques dionisíacos, das músicas altas, das gargalhadas forçadamente estridentes, como se todas as pessoas que conhecia - e as que não conhecia - fossem dominadas por espíritos espalhafatosos movidos a luxúria.

Baixou a câmera com reverência, fitando mais uma vez o panfleto tímido preso na superfície áspera do poste de iluminação à sua frente. Era um cartaz que retratava rostos e nomes de pessoas desaparecidas. Estava a ponto de sentir-se culpado e até mesmo triste com o fato de que havia pais, mães, irmãs e namoradas procurando por aquelas pessoas naquele exato momento, sem ter nenhuma notícia sobre se estariam vivas ou mortas, perdidas ou enterradas em alguma vala clandestina, mas foi interrompido por uma mão pesada em seu ombro, quase desequilibrando-o.

- Que diabo você tá fazendo fotografando gente desaparecida, rapaz? - Uma voz grossa e jovial sobressaiu-se à cacofonia carnavalesca que assolava toda a rua.

Era Timão, seu melhor amigo. Os dois eram camaradas desde sempre, nem se lembravam mais quando fora a primeira vez que se falaram. Timão forçara-o a sair da cidade grande e seguir viagem para aquele lugarejo no litoral, de modo que os dois pudessem passar o carnaval juntos. Fazia anos que não aproveitavam uma folia solteiros e Timão dissera que aquilo iria lhe fazer bem. Quando ouvira o argumento, Carlito até concordara, dois dias atrás. Agora, já não tinha tanta certeza. Havia terminado um relacionamento de três anos e tudo o que ele conseguia fazer, ao contrário do que previra o melhor amigo, era pensar na namorada ou em coisas tristes como aquela...

- Pessoas desaparecidas. - Carlito balbuciou.

Timão deu de ombros, encolhendo os braços de um jeito engraçado e fazendo uma careta. Ele era um sujeito largo e forte, do tipo que chamava a atenção das mulheres e, ao mesmo tempo, afastava os homens que temiam alguma briga. Era uma boa companhia para o carnaval. O rapaz corpulento disse:

- Pois é. Pessoas desaparecidas. É carnaval, irmão, que papo é esse de tirar foto de gente sumida?

Carlito coçou a nuca ao responder:

- Eu... O cartaz me chamou a atenção, só isso. Pensa só. Tem gente agorinha procurando por essas pessoas, gente que se importa com elas, que sente saudade da companhia e tal. E aqui estou eu, perdido com essa multidão bêbada. Se eu sumisse agora, ninguém sentiria a minha falta... A única pessoa que me amava me deixou. A essa altura já deve tá com outro.

Timão enrugou ainda mais o rosto queimado de sol antes de esboçar um sorriso de escárnio, retrucando:

- Ei, e eu? Eu não conto? Eu ia sentir sua falta, ora! E sim, ela já deve tá com outro mesmo, é carnaval! Você devia fazer o mesmo! Me dá essa câmera aqui!

Timão puxou o aparelho das mãos de Carlito, que observou desanimado o seu amigo folião focalizar a câmera para o lado. Eles estavam no meio da rua e o sol queimava o lugar como se todos estivessem em uma enorme frigideira. Pessoas fantasiadas passavam para lá e para cá, bandas tocando marchinhas desfilavam não muito longe. Vozes ébrias e aquele cheiro agridoce e orgânico de suor. O cheiro do carnaval.

O amigo truculento focalizou uma vendedora atrás de uma barraquinha improvisada que estampava repetidas vezes o logotipo de uma cervejaria nacional. A vendedora, que era tão jovem quanto os dois, instintivamente percebeu que havia chamado a atenção dos dois amigos e sorriu ao perceber que tiravam uma foto sua.

Asfixia (conto)Onde histórias criam vida. Descubra agora