29. Alguém tem que findar

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Não pareceu passar muito tempo, mas logo acordei amarrado numa cadeira. Olhei para cima, com a minha visão incompletamente normal; e lá estava ele com um rifle na mão, o mesmo que me mostrou na sala de sua casa. Ele tirou um pano que estava amarrado em minha boca.
— Bom dia, bela adormecida — ele disse sarcástico.
Olhei pra porta; — com os olhos semicerrados por não conseguir enxergar tão bem — e os raios de sol que entravam pelas frestas da madeira, me incomodaram um pouco. Já era dia.
— Quero dizer, boa tarde. Achei que acordaria antes; o sol já está se pondo. 
— O que fez comigo? — perguntei rouco. Minha boca estava seca e ardendo. 
— Nada demais. Só te coloquei pra dormir, antes que virássemos... Você sabe, o jantar.
— Do que está falando? — Eu ainda estava confuso, não entendia como ele podia ter me deixado inconsciente por uma noite inteira. E também não entendia por que eu estava amarrado. Tentei me soltar, minhas mãos estavam amarradas atrás da cadeira, e minhas pernas estavam amarradas nos pés da mesma. As tentativas foram em vão, eu estava fraco demais, e a cada vez que me mexia, a corda me machucava, me cortava. — Me solte.
Ele riu alto.
— O que vai fazer se eu não te soltar? Não vai gritar, vai? Como uma mocinha em perigo.
— O que você quer comigo? Por que está fazendo isso?
— Errado! A pergunta é, o que você quer com a minha filha, e por que está fazendo isso?
Não respondi. Que tipo de psicopata ele era? Será que fazia isso com todos amigos de Jenny?
— Estou esperando que me responda! É algum jogo? Está tentando se divertir antes de fazer de minha filha sua refeição?
— Do que você está falando?!
— Vamos pular essa parte! Onde o monstro finge ser o mocinho! Já estou velho e cansado pra ter que aturar isso todas as vezes. Eu podia te matar sem perguntar nada; mas quando se trata de minha filha é diferente, eu quero saber todos os detalhes.
Estava claro de que eu não precisava mais fingir. Ele sabia o que eu era, e eu também já sabia o que ele era.
Nunca vi de perto um caçador; eu imaginava ser mais assustador, pelo modo como Robert falava. Ele me ensinou todos os truques; era difícil identificar um, mas convidar um vampiro para entrar em sua própria casa e jantar com sua familia, com certeza esse era um truque novo.
— Não fiz nada a Jenny, pode perguntar a ela se quiser.
— E você acha que não perguntei? Mas é claro que eu não descarto a hipnose.
— Não, eu não a hipnotizei!
— Você acha que eu acredito em você, rapaz? É você quem escolhe se quer uma morte dolorida e lenta ou se quer morrer rápido.
— Não tem por que me matar, eu não fiz nada!
— Mesmo que estivesse dizendo a verdade, não fez nada ainda!
— Conheço ela a apenas três dias.
Eu estava pensando, se a essa altura, Jenny já sabia quem eu era.
Ele riu, havia diversão em sua risada. Olhei confuso.
— Você realmente não tem muita noção das coisas, garoto. É quase inofensivo.
— Talvez não concorde comigo, mas sou muito mais perigoso pra você, do que você é pra mim.
— Eu concordaria se este rifle não estivesse carregado de munições completamente cheias de enxofre.
Então me lembrei de quando Robert me ensinava sobre os caçadores. Eles usavam balas de enxofre para matar vampiros, e uma mistura de mercúrio com clorofórmio para esvaecer. Era quase uma aula de química.
Harold não queria me matar, se quisesse, já teria feito. Então talvez, se eu fingisse não ser tão perigoso quanto eu realmente era, ele pudesse me soltar. Afinal, era a única alternativa que me restava, já que eu não conseguiria mesmo me soltar.
— Enxofre? Que mal isso causaria a mim? — perguntei, dando de ombros.
Ele olhou torto, desconfiado.
— Causaria a sua morte! Vai dizer que não sabia disso? Que espécie de vampiro você é? — me olhava, com ironia. — Não responda. Quero dizer, você sabe que existem espécies diferentes né?
Eu não podia fingir tanto, iria me entregar.
— Eu sei — respondi, sem me aprofundar.
— Não precisa ter medo de dizer, sei que você é um Scarly. Seus olhos já estão quase vermelhos.
Desviei o olhar. Como podia? Não era pra aparecer tão rápido.
— Está se perguntando por que seus olhos já estão vermelhos, não é? Bom, eu te desidratei... por três dias.
Arregalei os olhos. Três dias??
— Por que acha que não consegue sair dessa cadeira?
De repente, houve um estrondo vindo de lá de fora e gritos. A expressão brincalhona de Harold, tornou-se em desespero.
Ficamos em silêncio, sem reação, olhando para porta. Mais uma vez, gritos; dessa vez de Jenny. Harold não pensou e correu em direção a escada.
— Espera! Me solte! — gritei em vão. É claro que estava fora de cogitação, ele não imaginava que eu poderia ser útil; então só vi a porta do porão balançando depois de sua saída. Já era noite.
Tentei me soltar novamente. Enquanto eu puxava minhas mãos, a corda entrava ainda mais em minha pele, como um objeto cortante, pingava sangue no chão, mas eu não podia desistir agora.
Em meio as tentativas falhas de me libertar, alguém entrou com pressa no porão. Olhei pra cima, e Ben já estava com uma espécie de punhal cortando as cordas.
— Vamos, não temos muito tempo — disse ele.
Me levantei e em seguida tive uma vertigem, o que quer que Harold tivesse feito comigo, ainda fazia efeito. Ben me pegou antes de chegar ao chão e me ajudou a andar.
Enquanto corríamos, — na medida do possível — para fora daquele porão, vi Jenny e sua mãe dentro do carro enquanto Harold vasculhava o local com seu rifle.
— Como me encontrou? — perguntei enquanto seguíamos para o meio da floresta.
— Cara, longa história. Não tinha um lugar melhor pra se meter?
— Acha mesmo que eu sabia?
— Não consegue ser mais rápido? Não quero voltar furado pra casa — disse, apertando os passos.
— Espera, espera!
Parei e vomitei até não querer mais; parecia que estava vomitando pedaços de meus órgãos, agora sim, essa foi a pior situação de regurgitamento que eu já havia passado.
— Corre! — Roy passou por nós gritando.
Sem pensar, começamos a correr para o mesmo sentido que Roy corria. Ouvimos alguns tiros, mas estava muito longe pra poder nos acertar.
Roy sumiu no meio das árvores, Ben permaneceu me ajudando a correr, chegamos a margem do lago Peyto, Roy não estava lá.
— Não há chances de Harold ter acertado, Roy, certo? — perguntei, arfando.
— Não... É claro que não — garantiu, Ben.
De alguma maneira não senti firmeza nas palavras de Ben.
— Acho que devemos voltar.
— Tá louco?  Não basta ter sido alvo de um caçador por três dias?
— Agora todos nós somos alvos, Ben. 
— Relaxa, cara. Roy é esperto.
Sentei-me numa pedra, enquanto procurava ar nos pulmões.
— Cara, às vezes me sinto mais humano do que muita gente.
Ele riu.
— Vamos pra casa, já despistamos o caçador. E Roy já deve estar lá.

Chegando em casa, realmente Roy estava lá. Mais frenético do que nunca.
— Cara, que irado! Acho que nunca desviei tanto de tiros! James, ainda não acredito que você parou pra vomitar com um caçador na sua cola — zombou ele.
— Experimente ter pedaços de carne com alho no seu estomago por três longos dias!
— Teve "três longos dias" para fugir e não conseguiu sozinho? 
— Roy, eu estava preso, adormecido, com um rifle apontado para a minha cabeça!
Ele riu. E então me lembrei por que eu preferia estar na casa de um caçador.
— Ele só está brincando — disse Robert, me tranquilizando ao se aproximar. — Não é mesmo, Roy?
Roy revirou os olhos e não respondeu.
— Quero que me conte cada detalhe. Começando por, onde você estava com a cabeça em se aproximar da filha de um caçador?
— Não entendo como vocês acham que eu poderia saber disso.
— E não sabia?
— É claro que não! Nunca havia visto um de perto, pra mim Harold era um pai super protetor, só isso.
— Nem desconfiou quando viu sua coleções de armas?
— Ele disse que fabrica...
Roy riu alto.
— E ele realmente fabrica, só que não para matar pessoas — disse Roy, ainda rindo.
— Tudo bem, fui estúpido em acreditar...
— Estúpido?! — sua voz tinha um eterno tom de gozação.
—  Ok, Roy. Quando é que vai parar com isso?
— Parar com o que? — Ele ainda zombava.
— Não comecem de novo — disse Robert. — É com James que quero conversar, já pode subir Roy.
Roy fechou a cara e subiu as escadas resmungando.
— Ele que nos coloca em perigo e eu que sou o errado...
— Dê tempo a ele, James — disse Rob, quando viu minha expressão de queixa.
— Achei que depois desses três dias, ele já estivesse melhorado.
— Melhorado? — Ben reprimiu um riso. — Tá pior que antes.
Liz lançou um olhar de reprovação para Ben, que estava ao seu lado, foi quando a percebi na sala.
Liz sentou-se calada no pé da escada, e Ben fez o mesmo.
— Mas por um lado ele tem razão, James — começou Robert. — Agora que o caçador sabe que tem vários vampiros soltos na cidade, ele não vai sossegar até nos encontrar.
— Desculpe... Eu não tinha ideia; juro que se eu soubesse...
— Eu não te culpo, James — ele me interrompeu.
— O que podemos fazer?
— Sair da cidade é a melhor alternativa.
— O que?! Não! Deve existir outro jeito...
— Existe. Mas não queremos caçar o caçador, não é mesmo?
Me calei diante ao argumento.
— Bom, vamos deixar essa conversa pra mais tarde; acho melhor primeiramente verificar o perímetro. Passaremos a noite aqui e partiremos ao amanhecer.
— Mas assim tão de repente?
— Sim, James. Quanto antes melhor; não podemos esperar.
— O senhor nem conversou com Roy, ele tem uma namorada aqui.
— E não é primeira nem última. Tenho certeza que para onde formos, ele encontrará pessoas tão boas quanto Veronika. Eu gostaria de não precisar estar tomando esta decisão, mas já tivemos esta conversa antes, viver pra sempre nos obriga a desapegar de pessoas e lugares.
— Ele vai me culpar pelo resto da vida...
— Ele ou você? Você sabe que Roy está numa fase complicada, sabe que ele nao é assim. E eu sei que isso não se trata apenas de Roy e sua namorada.
Desviei o olhar.
— Nada é tão constante, James. Por mais forte que seja seu sentimento por ela agora, você pode sobreviver sem. O tempo é o nosso maior aliado. Somos capazes de amar várias vezes.
—  Falando assim parece simples — dei de ombros.
— Há quanto tempo não a vê? — perguntou Ben. — Entre pensar nela aqui e pensar nela em New York, qual parece mais interessante? Afinal, você sabe que enquanto você está aqui se lamentando, ela está lá idealizando seu noivado.
Franzi o cenho. Eu não a via a tanto tempo, que nem sabia mais quanto tempo fazia. Só sabia que era muito. Eu não sofria mais, mas ainda pensava; era inevitável.
— Você vem comigo, Ben? — perguntou Robert, e Ben se levantou. — Vocês dois não saiam daqui.
Robert e Ben sairam vasculhar a redondeza, se certificar que estaríamos seguros pelas próximas horas.
Sentei-me calado ao lado de Liz. Ela colocou a mão em meu ombro e me lançou um olhar de pena.
 — Não me olhe assim; vou ficar bem.
— Eu sei que vai.
 — Só estou envergonhado pelo o que causei; obrigando vocês a se mudarem antes do tempo previsto...
— Superaremos. Uns melhor do que outros, mas o importante é estarmos juntos.
Sorri pra ela. Como poderia ser tão compreensível?
Meu sorriso perdeu o vigor, definhou-se quando escutei barulhos estranhos vindo do segundo andar.

Entre Nossas DiferençasOnde histórias criam vida. Descubra agora