A Barata

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Era uma dessas sextas-feiras que a gente está cansado e quer se jogar no sofá para assistir algum filme na tv à cabo. Já tinha escurecido e eu estava no ponto de ônibus de sempre, equipado com a minha fiel escudeira - a mochila - e uma mala pequena. Aguardava o transporte que me levaria para outra cidade, onde mora o meu amor.

Meu amigo pipoqueiro estava presente quando aconteceu. Na verdade ele não sabia que era meu amigo mas eu o denominava assim. E juntos estávamos ali, naquele lugar com tantas outras pessoas.

Um. Dois. Três. Vários. Muitos transportes passaram mas não o meu. Talvez o ônibus estivesse conspirando para o que viria a seguir. Vai saber.

O ponto estava cheio e eu permaneci próximo ao meio-fio, como de costume. Minha altura não permite que eu me dê o luxo de esperar mais perto dos bancos com cobertura. Com tanta gente na minha frente eu só veria nucas. E nucas não transportam ninguém para outra cidade. Um pouco à frente, colado ao meio-fio ficava um bueiro, desses retangulares que dá para ver o que tem dentro.

E como que atraído a olhar, eu olhei. Calmamente, com toda a paciência do mundo, como se não houvesse amanhã, uma barata saiu. E ela dava sentido ao termo barata tonta. Então eu entendi que a calmaria daqueles passos não era proposital: a barata não estava bem.

Ah, como eu odeio. O animal que eu mais abomino. Tanto que nem piso. Me dá pena.

Pena de sujar a sola do meu tênis azul turquesa. Sabe aquela gosma branca que sai quando a gente esmaga? Ela não é justa.

Talvez meu nojo venha da madrugada em que acordei com sede e quando fui até a cozinha beber água, meu pé descalço fez crec. Bom, vocês sabem o que vem depois.

Então eu estava lá, no ponto de ônibus, observando a barata que teve a ousadia de sair bêbada do bueiro. Dou uma chance para vocês adivinharem quem é o ímã para insetos deste nível.

Pois é.

Ela sumiu por segundos.

Está subindo o meio-fio.

Reapareceu próxima de um homem que estava na minha frente. Tonta estava e tonta continuou a investigação fora da sua casinha, sem se intimidar com os dez, talvez quinze pares de pés que estavam ali.

Então eu me dei conta.

A cada centímetro que ela conquistava na direção oposta ao bueiro eu torcia para que ninguém a visse e a esmagasse.

Fim do mundo. Passei todo o meu tempo de espera com um olho atento ao ônibus que poderia chegar e o outro na cretina da barata que tinha me feito mudar de opinião.

Ela se aproximou dos bancos e em momento algum se agitou. Voltou para o asfalto, perto do seu bueiro e eu respirei aliviado. Aí ela decidiu dar um tapa na minha cara de vez. Andou em direção ao asfalto.

Ao as-fal-to.

Com carros e ônibus e motos e bicicletas passando o tempo todo com a velocidade alta. Tremi.

Burra. Sai daí! Quer morrer? Você não tem noção do que tá fazendo!

Mas ela tinha. Pneus cantaram ao seu lado e ela estava lá: rumo ao outro lado da pista, que não era estreita. Com o coração na mão eu a vi voltar, desafiando monstros de metal infinitamente maiores que ela e seus passos desconexos.

Ufa. Sua louca. Não me dê sustos assim.

Mas aí aconteceu.

Enquanto fazia seu trajeto de volta, um ônibus que não era o meu passou. Junto dele estavam outros ônibus. E carros. E eu perdi a barata de vista. Meu coração se partiu. Procurei por ela. E então meu ônibus chegou. E eu tive que entrar.

Desejei que ela estivesse bem e que eu tivesse ficado distraído segundos suficientes para ela alcançar um lugar seguro. Eu sabia que, de onde ela estava, não seria possível.

Um pesar dentro do peito.

Maldito animal que me mostrou a possibilidade de mudarmos nossa visão da vida.

Sabe, eu não piso em baratas.

Tenho pena.

Pena do quedeixaríamos de aprender se uma delas morresse.

A BarataOnde histórias criam vida. Descubra agora