O ensaio

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Todos são inseguros, os que dizem não ser escondem ou ainda não a descobriram. Não é segredo que homens geralmente são inseguros quanto a própria masculinidade e o tamanho do pau. mulheres, um pouco mais inseguras --- não por causa do sexo em si, mas porque existe uma imensa pressão social para que o homem se demonstre seguro --- o são em relação a aparência, sua e das outras, inteligência, capacidade de serem mãe etc. Estas são inseguranças básicas apresentadas pela maioria das pessoas, por mais que a situação tenha mudado na última década: homens preocupados com sua aparência ou capacidade de serem mãe; mulheres inseguras quanto a própria feminilidade e o tamanho de seu caralho imaginário.

Antes de começar a escrever este ensaio já fui acometido pela pressão social que é tão real quanto possível para algo abstrato. Me perguntei se escreveria sobre insegurança por me sentir inseguro e, inconscientemente já preparava defesas contra o júri social invisível e ensurdecedor. Eu, que apesar de saber não ser imune a insegurança, julgava-me resistente, estava inseguro em escrever sobre insegurança.

A despeito do coro social julgador decido analisar minha insegurança, mas precisaria resolver um dilema antes: como poderia, objetivamente, me analisar se esta sob o efeito daquela loucura mansa e persistente?

Como solução decidi criar um personagem, sobre o qual faria minhas observações a partir de uma perspectiva externa. O momento também era favorável, pois passaria 30 horas viajando de ônibus para São Luís do Maranhão. Para efeito de me diferenciar do personagem atribuirei a ele o nome de Ricardo, enquanto sua namorada será K.

* * *

Ricardo e K não estavam em uma boa fase do relacionamento que já durava mais de dois anos. Contara isto a ele fazia poucos dias em uma conversa no Skype. Tão simples como digitar "vc sabe que a gente já não tá bem..." a insegurança começou a aparecer nele como uma coceira na nuca, aliviada quase imediatamente, mas que retornava apenas para não deixar de existir, quase dotada de consciência.

Entrou no ônibus já perturbado pela insanidade que de tão amena poderia considera-la passiva, talvez por isso tivesse a sensação de certeza de que se extinguiria por si só, bastava esperar. O problema, contudo, era que K não colaborava, demonstrava-se distante, fria e, apesar dele saber que ela tinha motivos para tal comportamento, não conseguia parar de se coçar. Seria exagero dele ou dela? Haveria um motivo por trás daquela distância amarga?

O tempo passava, a viagem se prolongava com paradas frequentes e desnecessárias, e a distância entre eles aumenta à medida que se aproximavam do destino. A loucura se alimentava dos pequenos gestos de repudia, fortalecendo-se. Simploriedades como o negar de carícias e beijos culpabilizando o estresse ou agonia de causas desconhecidas não ajudavam na cura da enfermidade.

Desconhecia a experiência alheia, mas para Ricardo a insegurança vinha com cheiro de maresia, causando a sensação de estar na praia durante a maré alta. Suas edificadas convicções e certezas faziam-se areia e não sabia se seria varrido mar adentro pela próxima onda ou a tormenta cessaria, provando a resistência da fortaleza construída em volta do ego.

Contudo, refletindo sobre sua experiência marítima, começou a temer os efeitos pós-tormenta em seu edifício arenoso. Estaria sua estrutura permanentemente comprometida, destinada a sucumbir à próxima borrasca? Não sabia o que o assombrava mais: a sólida construção ser varrida do seu porto seguro e se misturar ao resto, todos os outros elementos não organizados por um ser inteligente, logo representantes do ordinário, que abominava ou passar o resto da vida temendo a destruição, apavorado e desesperançoso igualmente da brisa e do vendaval.

Manter-se alcoolizado foi uma opção saudável, afinal levara seis cervejas e dois vinhos, o que o anestesiou da dor físico-psicológica durante algumas horas, mas seu fígado não era jovem e a viagem longa. A presença vazia do invólucro de K era patente. A sensação de solidão ao lado de 40 pessoas é similar a de uma árvore na floresta, tão próxima às outras quanto infinita uma distância mínima para o que é imóvel.

Depois de 20 horas se flagrou imaginando o que K pensava enquanto ela fitava a paisagem em movimento. Criou em sua mente cenário diversos dela o abandonando, casada com outro homem, filhos parecidos com seu substituto, todos sorrindo e com o rosto rosado cheio, uma casa com jardim, uma vida feliz da qual não faria parte. Tão imerso estava na idealização de cenário que não lhe passou pela cabeça a possibilidade dela estar pensando em qualquer outra coisa, logo quem se distanciava era ele mesmo, deixando-se levar pela corrente fria da maré matinal.

Tornou-se irritadiço e não demorou para que K notasse sua inquietação. Observou que seu homem se calara e a tratava com frieza. Em algumas tentativas lhe fez carícias e o olhou com ternura, mas a insanidade que se instalara ao ego de Ricardo fez com que seus gestos carinhosos fossem interpretados como tentativas forçadas de se livrar da culpa de não mais o amar. A insegurança é tão forte quanto a grandeza do ego que parasita. É uma areia movediça que se utiliza do peso da própria pessoa para afundá-la no oceano do medo da perda, onde naufragam mais almas do que no mar da perda em si.

As últimas horas foram as mais difíceis. Ricardo se tornara residente daquele oceano salgado, áspero e arenoso. À deriva e podendo beber apenas da água que o enlouqueceria definitivamente, cedeu à sede. Mergulhou no abismo da insanidade onde repletou-se da única certeza que separa os que pularam dos outros: a certeza absoluta de que se é são.

Quando já iniciado na enfermidade e inserido em sua escuridão, à beira do colapso do castelo arenoso, quando os trompetes, trombones, tambores e baterias prenunciavam o apocalipse social, o ônibus parou. O frenesi de se sentir em terra firme, livrar-se do âmbito no qual fora acometido por aquela enfermidade que agora se demonstrava nefasta, agressiva e sorrateira, o dominou.

A caminhada até a saída foi penosa, Ricardo cria ão haver nada a ser feito para reatar seu namoro. Mas com os pés firmes no chão emergiu do estado paranoico com um beijo que K deu em sua bochecha, seguido de uma declaração de amor. Abruptamente, oposto ao seu início, a loucura cessou, como um corpo que, ao atingir o fundo do abismo tem sua existência encerrada. Um final de resplendor notável, tanto que Ricardo quase pôde ouvir uma maravilhosa orquestra sinfônica a reger o impacto esplêndido.

Contudo, o êxito aparente da experiência logo cedeu lugar a uma coceira na nuca que o perturbava mansa, pois residia agora no abismo e, fundido a ele, este era possuidor de seu corpo, ou o que restou dele. Portanto, antes de deitar para dormir não conseguia evitar ouvir a pergunta que ressoava quase muda em sua mente, sempre lá, com sua presença discreta e sigilosa.

Ensaio sobre a insegurançaOnde histórias criam vida. Descubra agora