cap 1

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Os respingos da chuva caíram no meu rosto, tão gelados quanto o dia. O vento era gelado para garotas normais, escaldantemente frio para mim. Parecia perfurar meus ossos. A cada passo, eu mergulhava em mim tentando achar calor em algo frio.
Eu nunca fui boa em nada. Nem bonita. Tinha que ser boa em pelo menos alguma coisa - comi demais, vão perceber meu peso, vão perceber minha inutilidade. Eu quero ser magra, eu preciso ser - pensei - Por que eu como tanto?
Liguei o chuveiro, som abafado. Ok. Porta trancada. Ok. Queridos dedinhos, façam da minha garganta um jardim florido. Sementes plantadas. Colhi rosas instantâneas.
Não sou bonita, nem magra. Sou uma grande porca - pensei. Durante o banho, apertava minha barriga, tentando diminuí-la. Não, isso não funcionava. Mão em minhas costelas estavam amostra. Ainda gorda.
Dormi chorando. De novo. Acordei atrasada, chorar a noite toda tem suas consequências. Cheguei a escola e fiz o de sempre: parecer ser uma garota normal, mas não, nunca fui. A unha arranhou meu jardim na noite passada. Ainda dói. Sorria.
Total de pessoas que queremsaberbarraseimportam se você vomita suas refeições ou deixa de comê-las: zero. O mesmo número de calorias que eu deveria comer por dia.
Sente na primeira cadeira. Seja uma ótima aluna. Conte à sua mãe a quantidades de 10 que você tem e nunca chegue em casa com um boletim escrito "Reprovada. Reprovada. Reprovada..." E ela fará você se sentir mais inútil do que o normal.
Frio demais, pessoas normais estúpidas! Por que e para que tanto frio numa sala com 41 alunos? Meus ossos doem, e pernas e braços fazem movimentos involuntários. Meu casaco é sempre o mais quente. Meus ossos agradecem.
Três noite inteiras estudando: 2,5. Odeio química. A turma foi dividida em: pessoas que tiraram 7, as que tiram 8 e 9, e as que tiraram 2, 5 (eu). Copiei meu dever sorridente, como garotas lindas, magras e exemplares fazem. Fulana de tal é linda e inteligente, ciclana é uma aluna exemplar, e eu? bom, eu vou à escola com marcas e band-aids pelo corpo, com os olhos inchados, com a garganta ardendo e com fome.
Posso ir banheiro? Por tampouco não deixo cair meu apontador no caminho.Calçinha preta de algodão. Abaixei 4 cm da cintura direita. Último box do banheiro. Dois pingos de sangue no chão perto da lixeira. Cinco linhas, paralelas e transversais. Pouco mais leve. Ainda gorda e ainda burra. Levei ban-aids no bolso, eles viviam comigo. Band-aind + calça + andar: arde.
Você tem um sorriso lindo - disse uma menina morena que sentava todos os dias no mesmo maldito lugar de sempre e sorria na minha direção - eu sorri de volta. Meus cortes estão ardendo. Obrigada - eu a respondi. Sentei e continuei sorrindo. Quem sorri muito, tem sempre algo à esconder.
Enquanto todos em minha volta comiam, eu fazia as contas das calorias que ingeriam a cada mordida. Enjoo. Como conseguem comer desse jeito? Parei de contar. Estou forte o suficiente. Não preciso comer. Teve uma época, em que eu comia dentro do banheiro, evitar andar e correr o risco da comida chegar rápido no estômago. Comia porque me achariam louca. Afinal, que criança com doze anos deixa de comer no intervalo?
Ninguém nunca perguntou o porquê eu tinha a tabela do número das clarias dos alimentos decoradas ou, o porquê do espaço entre as minhas pernas, ninguém nunca se importou com as minhas idas e vindas do banheiro. Ninguém nunca ligou (morra, e terá fãs.)
O calor está me matando, o meu cabelo desidratado está esquentando meus ombros. Meu pequeno universo gira duas vezes. Quase caí. Quase. É só calor.
Prato dividido em oito partes. Mastiga. Mastiga. Mastiga. Mastiga. Mastiga. Mastiga. Engole. Respira. Sorria. Está tudo bem, eu amo comer. Não, não está, não eu não gosto. Sorria. Comprei uma escova nova - lembrei. Meu jardim agradece.
Naquela mesma noite a saudade parecia perfurar a minha pele. Doeu mais que minhas linhas transversais, ou quando plantei minhas sementes de rosas instantâneas. Tive saudade. Saudade da infância, dos tempos onde sorrir era consequência de se estar feliz, de verdade. Saudade de quando ser magra não era meu objetivo de vida. De quando o abraço da minha mãe era a coisa mais poderosa do mundo. E por fim, senti saudade da pessoa que me faz forte. Todos os dias. Da qual o sorriso era a melhor parte do meu dia. Tristeza me pôs para dormir. E adormeci de conchinha com a nostalgia
A menina que sentava no maldito lugar todos os dias, passou a vir falar comigo. Todos os malditos dias. - Por que justo eu? Com 41 pessoas, por que eu? - até hoje me pergunto isso. Passamos a nos falar sempre. E eu nunca tinha me sentido a vontade com alguém. Mesmo não estando tão a vontade.
Os dias em que meu pequenino buraco no estômago gritava, ela vinha me oferecer algo calórico. - Não quero obrigada! - eu sempre dizia e ela sempre desconfiava mas nunca dizia uma palavra. "Minha vida, minha dieta" eu costumava pensar.

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