(1999) Eddie: Fim de um capítulo

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No princípio de tudo...

Puta que pariu, isso está até com ar bíblico.

Mas a verdade é que tudo tem um princípio. E, nesse início, eu vou contar que nem sabia direito o que eu estava fazendo. Cresci ouvindo música. De uma certa forma, cresci fazendo música em qualquer coisa que colocava as mãos. Desde que comecei a trabalhar, e isso foi mais ou menos quando aprendi a andar, fazendo qualquer coisa, até ajudar a vizinha com as sacolas do mercado em troca de uma moeda, eu juntei a grana pra comprar um violão. Não sabia tocar aquela porra, mas comprei assim mesmo e aprendi na marra. Com o baixo foi mais ou menos a mesma coisa, embora tenha apanhado mais. Cresci ouvindo rock, principalmente a criatividade a serviço do caos que é o punk.

Tem mais duas coisas que faço desde que tenho consciência que sou gente: escrever e ter ideias.

Parece que os dois últimos estão ligados, mas na verdade não estão, não. Nada do que eu escrevo vem de mim. Bom, talvez venha, da minha resposta aos estímulos de fora, mas sempre vi essa parte como algo externo. As ideias são minhas mesmo. Eu estou sempre pensando, sempre inventando, sempre bolando o próximo passo, até quando estou dormindo: Sonho pra caralho.

Mas isso não foi o "princípio de tudo". O princípio mesmo foi quando conheci os Angels. Olha que tenho uma porrada de amigos. Mais que isso, tenho uma porrada de amigos sensacionais, e achei que eles só entrariam pra categoria dos caras incríveis que conheci. Nunca imaginei que estava diante dos meus irmãos e que, na rasteira disso, viria uma das maiores viagens da minha vida. Já era incrível quando a gente não tinha um puto e tocava em troca de cerveja. Desde o primeiro dia com aquela banda, não teve nada em que eu não colocasse o meu sangue. As músicas eram minhas, eu desenhava e distribuía esses panfletos pra apresentações em lugares como o Revenge (que podia ser um buraco, mas tenho uma puta saudade de lá) exatamente da mesma forma que, dez anos depois, eu me metia a cuidar do palco, da iluminação, até do que aqueles caras vestiam quando a gente tocava em estádios para milhões de pessoas. Não tô dizendo que era mais dedicado que ninguém, só que vieram me dizer que eu via os Angels como hobby, e puta que pariu, não tem nada mais longe da verdade. Sempre acreditei pra caramba na gente e briguei pra que a gente acontecesse.

Só que eu conheci uma menina.

Conheci a Emily.

Ela nasceu no meio da última turnê que a gente fez e logo em seguida eu estava na estrada de novo. Foram uns meses fodidos, pois ou eu sou muito burro, ou muito babaca, ou as duas coisas. Antes de ela nascer, pensei que era tranquilo, eu viajaria, ela ainda era super pequena, continuaria super pequena quando eu voltasse, tomaria umas mamadeiras e sujaria algumas fraldas nesse meio tempo, mas ei, ainda me sobravam muitos dias de mamadeira e fralda suja pela frente. Sabia que ia sentir saudade, mas nunca imaginei que elas me matariam, sabe? Pior, comecei a sentir saudade no dia que ela nasceu, que o médico a colocou nos meus braços e eu a peguei sabendo que, dali a pouco, teria de deixa-la pra trás. Esse foi outro princípio. Foi o começo de um último capítulo.

Quando voltei, um mundo e nada aconteceu.

Emily tinha crescido. Quando eu voltasse da próxima viagem, ela teria crescido mais ainda. E mais na seguinte. Pensei no meu pai, que não me viu crescer embora eu estivesse debaixo da porra do nariz dele o tempo todo. Foram motivos diferentes, mas o resultado era o mesmo, certo? E será que fazia alguma diferença uma pessoa saber que passou a infância inteira sem pai porque ele era uma casca oca ou porque ele passava meses fora trabalhando? Sei lá, acho que a solidão deve ser mais ou menos a mesma.

Comecei a trabalhar com a Malu uma música para o batizado da Emily. Sei que uma parte se deve ao fato da Malu ser madrinha e prima da Emily, além de ela ter esse coração enorme e incrivelmente puro e generoso, e a outra parte é talento mesmo, um talento absurdo. O que aconteceu é que ela saía juntando notas e acordes em todos os sonhos mais loucos que tenho para a minha filha. Tudo o que eu espero que ela seja, que ela viva, que ela sinta. A Malu tem uma puta paciência, porque a gente acabou a música em mais ou menos um dia. Mas era lindo pra caralho ver o que ela criava para a Emily, as duas mulheres da minha vida, e eu aparecia praticamente todo dia inventando sempre uma nova estrofe. Passava a noite escrevendo acréscimos só para ir lá no dia seguinte, porque aquilo, sim, era mágico.

Cara, eu tinha que estar presente para ver a Emily passar por tudo aquilo que a Malu compôs pra ela.

Então o príncipio virou fim. Amo tocar. Amo a banda. Mas amo outras coisas também. Amo escrever. Amo fotografar. E amo muito a Emily. No fim das contas, ela ainda tem a Rê e a Malu. Mas eu só tenho a ela. Ainda assim, estava me sentindo um filho da puta de ter que falar com os caras, principalmente o Vince, que é incrível, mas não tem filhos e podia me mandar parar de babaquice. Juro que pensei que o Tom e o Mick fossem entender, principalmente porque não falei nenhuma mentira. A Emily precisa de um bando de terapia, a Rê trabalha o dia inteiro, e puta que pariu, não vou larga-la com babá e motorista quando dá pra ajustar perfeitamente a minha vida pra ficar com ela. O que mais tem na sala de espera das terapias da Emily são babás. Puta coisa impessoal e triste pra caralho. Não quero a minha vida pra Emily, mesmo que eu tenha crescido em um conjunto habitacional e, ela, em uma cobertura. Como já disse, a solidão é a mesma. E tudo bem que os Angels são meus irmãos, mas iam continuar sendo, e conhecemos uma porrada de baixistas bem melhores que eu. Não era pra ser o fim da banda.

-Você só pode estar de sacanagem – Vince falou. – Isso não é sério.

-É sério e definitivo – eu respondi. – Mas tipo, eu continuo com vocês até vocês acharem outro baixista. E posso continuar ajudando com as letras. Só não posso mais sair de Londres.

-Mas que porra é essa de outro baixista? – Vince era quem estava a cargo das falas, pelo visto. Isso estava me deixando bastante nervoso. – Não existe outro baixista!

Olhei pro Tom e pro Mick. Cacete, eles tinham três filhos. Tom só foi conhecer o Victor depois de sete anos. Eles eram uns puta pais. Eles tinham que saber do que eu estava falando, caralho! Por mais que a gente nunca tivesse imaginado os Angels com uma formação diferente, tinha de rolar alguma solidariedade, ao menos uma compreensão, em algum nível. Ok, esquece o que eu falei do meu pai. Foi agora que nunca me senti mais sozinho na vida.

-Não tem outro baixista – Mick falou. – Se você tá saindo, é o fim dos Angels.

-Pera aí! – Tom falou. – Que porra é essa?! Não tem cabimento a gente acabar porque esse cara tá tendo ataque de mulherzice!

-Ei! – Ia protestar, mas Tom continuou falando:

-A gente tem filho, sente falta, é uma vida fodida, é! E aí larga a banda? Seja homem, porra! Puta nojo, puta vergonha da sua atitude! E se agora você vai se enfiar em casa, a gente arruma outro. Uma porrada de banda continuou, a gente continua também!

-Ei, calma – Vince tentou segurar a onda porque isso é o que ele normalmente faz, e faz bem. – Agora não dá, Tom. Pode ser que mais tarde dê, a gente conversa sobre o assunto, mas agora não vai rolar. É definitivo mesmo, Eddie?

-É – Respondi, sem nenhuma hesitação. E eu estava culpado, preocupado, triste pra caralho, mas não estava nem um pouco hesitante.

-Você é um filho da puta, egoísta da porra! – Tom enfiou o dedo na minha cara e achei que ele fosse me dar um soco. Se desse, deixaria vir. Mas Vince o segurou. – Nós somos quatro, caralho! Você não pode fazer isso com mais três pessoas. A banda pode ser hobby pra você, mas pra gente é coisa séria!

-Deixa disso, Tom, vamos esfriar a cabeça – Vince o puxou. – Depois a gente volta a falar disso com mais calma.

Estávamos na minha casa. Mick foi com eles, mas disse, antes de sair.

-Olha, Eddie, o que você fez exige colhão. Eu te dou esse crédito. Tô puto, mas te dou esse crédito.

Tá uma merda, mas não me arrependo. Não dá para eu me arrepender de algo como isso. Sei a posição que os coloquei, mas não dá pra voltar atrás. Aceito tudo o que eu ouvi, principalmente quando o Tom me chamou de egoísta da porra. Sou egoísta pra caralho, mas não por causa da Emily, e sim porque, o que mais me dói, é que o fim dos Angels é um cu pra mim tanto quanto é pro Tom, ainda que quem tenha provocado a decisão tenha sido eu. Só que ele pode buscar consolo na Malu, e eu não.

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Esse POV faz parte da semana do Eddie, que acontece até o dia 16/8 no grupo Realidades Paralelas da Mari


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora