(1996) Eddie: Lily

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Se você ainda não chegou a 1998 nos Diários, este POV contém spoilers  

Há dois anos, eu morri. Minto, há dois anos, eu me matei. Nos dias que se seguiram, como eu estava do outro lado do mundo, recebi uma porrada de telefonemas, e tenho cada um deles gravado na lembrança até hoje, pois estão no ranking das coisas mais sensacionais que já me disseram. Um deles foi da Kate, soluçando e berrando (não sei como ela conseguiu fazer as duas coisas ao mesmo tempo), e ela disse exatamente isso:

-VOCÊ PARA DE SER BABACA! SE OLHA NO ESPELHO, PARECE UM MENINO DE CINCO ANOS, COMO ME FAZ UMA MERDA DESSAS? NÃO TENHO ESTRUTURA, EDDIE, JURO QUE NÃO TENHO ESTRUTURA! REPITA ESSA PORRA E VOU NO SEU CAIXÃO TE LEVANTAR NA PORRADA! AGORA VEJA SE APROVEITA A SEGUNDA CHANCE QUE O UNIVERSO TE DEU E TOMA JEITO!

Porra, pior que eu pareço mesmo ter cinco anos. Estou louco pra fazer uns quarenta pra ver se eu fico com cara de homem. Não é tanto a questão da idade em si, é mais a inocência do meu rosto, sabe? Ela não representa nem de longe o que eu vivi, não tem nada a ver comigo. E sim, foi babaquice. Chegava gente, chegavam telefonemas, chegavam cartas de pessoas que eu nunca vi na frente, eu ligava a TV e via o meu rosto na tela. Era uma multidão preocupada comigo para eu me sentir tão sozinho. A Kate acertou em tudo, menos em um ponto: não foi o universo que me deu uma segunda chance. Foi um paramédico fã dos Angels que não desistiu de mim nem quando fui oficialmente dado como morto.

Eu lembrei dessa história por alguns motivos, todos eles relacionados. Primeiro, porque era impossível desvinculá-la do que aconteceu com a Malu. Eu a incentivei a ir para Paris para crescer e procurar o que lhe trouxesse felicidade, assim como, depois do que aconteceu comigo, eu decidi fazer a mesma busca. Antes de morrer, eu só reagia. Depois da minha morte, eu resolvi que ia ser mais seletivo com as experiências às quais reagir. Segundo, porque a Malu voltou, voltou com o Tom e... porra, sei lá. Sei nem o que dizer a respeito. É uma merda quando você prevê que vai acontecer o que sabe que vai te matar (dessa vez, de forma figurada), mas não pode ser o cara hipócrita que vai tirar a Malu do caminho da busca que você mesmo deu força para que ela fizesse. E terceiro porque ela ligou para mim e pediu que eu fosse ao apartamento do Tom e levasse o violão.

Cheguei lá e encontrei uma puta cena família. Victor estava jogando videogame e veio falar comigo em francês. Um garoto sensacional, aliás, que puxou o Tom e a Malu no que cada um tem de mais forte, e educado como só um filho da Malu poderia ser, mas sem ser bizarro. Tipo, um moleque feliz e saudável e a maior prova que as coisas são mesmo como tinham que ser. Tom abriu a porta e me cumprimentou com o "E aí?" de sempre, mas dava pra ver que ele estava feliz pra caralho. Cara, é uma merda. Sou totalmente o quarto elemento, super de fora, e ao mesmo tempo são pessoas que amo pra caramba, que quero ver bem. Sabe aquele lance de inseto ser atraído pra luz, mesmo que ela o mate? É exatamente o meu caso.

Mas não foi por isso que lembrei daquela história. Lembrei porque a Malu entrou na sala, segurando uma guitarra, seu rosto aberto naquele sorriso que acaba comigo e disse:

-Até que enfim, Eddie! Venha cá que quero te mostrar uma coisa! Vem também, Tom! – E, enquanto me puxava pela mão, deu umas instruções pro Victor em português, mas entendi o nome "Abbey Road".

-Abbey Road? – Perguntei.

-Meu estúdio. Foi batizado – Tom respondeu.

O que certamente foi ideia da Malu, pois ela sempre gostou de batizar as coisas. Dá uma enorme nostalgia cada vez que ela traz um pedaço da nossa vida antes de Paris para 1996.

-Tá tocando Stratocaster agora? – Perguntei.

-Não, é do Mick, ele me emprestou – Ela respondeu, enquanto entrávamos na "Abbey Road". – Eu queria fazer uma introdução.

-Da Stratocaster?

-Não, do momento.

-Momentos sempre merecem introdução.

-A não ser os momentos toscos.

-Momentos toscos a gente be... – Ia falar, me arrependi, me sentindo um jumento, mas Malu continuou:

-Momentos toscos a gente bebe pra esquecer.

-Mas não a cerveja do Bailey's.

-Cerveja do Bailey's só se for pra desentupir o vaso sanitário.

-Cerveja do Bailey's só se for pra...

-Porra! – Tom interrompeu, de saco cheio de provar do seu próprio remédio. Eu e Malu poderíamos ficar naquele papo eternamente desde que fomos ao Bailey's e tomamos uma cerveja tão ruim que virou nosso termômetro de comparação dali em diante. Tudo ia de dez a cerveja do Bailey's, e a gente podia falar disso por horas. Cara, a gente podia falar de qualquer coisa por horas, e parece que isso era algo que a Malu também havia trazido de volta a 1996. – Vamos à introdução, que a introdução da introdução parece que só termina amanhã.

-Ok – Malu falou, e o que disse a seguir me deixou arrepiado até agora. – Eu venho tentando terminar uma música há oito anos. É nossa, de nós três, sobre nós três, é muito importante pra mim e me segurou sempre que eu precisei. Eu não sei como você faz isso, Eddie, mas... ai, droga, eu não sei falar.

-Tá falando direitinho – Tom disse.

-Se falta voz na garganta, use a guitarra – eu sugeri.

-Então eu vou mostrar. É melhor mesmo.

Eu esperava um monte de coisas. Esperava ser transportado como sempre sou quando a Malu toca. Esperava uma melodia linda, sentida, como tudo o que ela faz. Mas nunca esperei que ela tocasse Lily.

Voltei oito anos no tempo, na noite que a escrevi, alheio à barulheira dos meus companheiros de apartamento, chorando feito um filho da puta, me sentindo muito sozinho, sabendo que o Tom se sentia perdido e deixando que o pessoal lhe desse o apoio que eu me via incapaz de fornecer, e pensando em toda a solidão e na dor que a Malu passava longe da gente. Nós três, o trio mais legal e mais fodido do mundo, todo mundo isolado e na merda e impossibilitado de se apoiar. Eu tinha de fazer alguma coisa a respeito. Se Saint-Malo nos enfeitiçou e nos aprisionou, Saint-Malo tinha de nos salvar, e era crucial que a Malu soubesse disso. Que podia estar todo mundo confuso, mas a essência daquela noite estava intacta e estaria sempre. Era o nosso porto seguro e o lugar para onde voltaríamos quando nos perdêssemos. Em qualquer momento que ela precisasse, era só ir a Saint-Malo e eu estaria lá. E, assim que o Tom conseguisse lidar com o que estava sentindo, era lá que ele estaria também.

-Cara, sabia que o Eddie ia começar com a viadagem – O Tom falou e eu voltei a 1996. Passei as costas das mãos no rosto rapidamente porque estava chorando. É outra coisa que tenho em comum com meninos de cinco anos.

Malu sorriu:

-Fiz justiça à Lily?

-Está perfeita. – Sorri de volta.

-Então você nos ajuda a terminar?

-Seria uma honra, mas você sabe que Lily não termina, né?

-Sei – ela murmurou. – Lily é eterna.

Eterna. Enquanto houver memória de um de nós três nesse mundo e muito depois disso, Lily não terá terminado.


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora