Amor contido

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Ele sempre a amou. E, quando mais o tempo passava, mais ardentemente se agarrou a esse sentimento - o que, em definitivo, arruinou a sua vida.

Eles se conheceram quando ainda criança, pois seus pais moravam no mesmo bairro. Inúmeras vezes, as vidas dos dois se cruzaram na década de 1970, sem que nada de diferente acontecesse. Eram meninos e seus interesses eram distintos. Ambos eram pobres, mas não faziam conta disso. As categorias de pensamento naquela fase da vida não comportam distinções de classes sociais. Eles apenas eram e viviam.

Somente quando foram estudar juntos, numa escola caindo aos pedaços no centro da cidade, já na adolescência, foi que tudo começou. Ao volver os olhos para ver quem estudaria com ele naquele ano, na expectativa de que nenhum de seus colegas dos anos anteriores faltasse, viu sua vizinha - agora, uma mocinha linda: olhos enormes, pela clara, linhas do rosto simétricas e uma bela cabeleira emoldurando tudo. Pensando bem, aquele momento permaneceu vivo em sua memória por toda sua vida - e que lhe serviu de alento quando a vida se tornava difícil.

Ela sorriu para ele. Ele acenou, meio sem jeito. Ela abaixou a cabeça, mexeu no lápis e no caderno. Ele congelou. Enquanto uma amiga chamou a atenção de sua conhecida, ele parou, o corpo todo recebendo uma descarga de emoções tão intensas que pensou que iria morrer. Mas, ninguém morre de amor tão jovem - e logo ele se recuperou, quando a professora irrompeu na sala de aula. A professora desandou a falar, dando as boas vindas aos novatos e a pondo ordem nos na turma que, cheia de alegre expectativa ou justamente por falta dela, fazia tanto barulho. Pergunte o que a professora disse naquele dia e ele vai sorrir e responder: "nem a vi entrar..."

Ele tentou, por diversas vezes, conversar com a menina que o cativou naquele início de ano, mas sem êxito. Sempre fora muito tímido. Na adolescência, porém, a coisa toda se agravara. Contando apenas com um amigo de verdade, pois lhe era penoso se relacionar com gente, ele tentou durante todo aquele ano tabular uma conversa qualquer. Penou tentando ser - ao menos - amigo da moça que amava tanto.

É bem verdade que uma vez acompanhou a menina até perto de casa, ajudou ela a entender os conceitos mais difíceis da matemática e até tocou em sua mão quando pegou o seu caderno emprestado - pois ficou doente e teve que passar uma semana inteira sem ir à escola. Mas, exceto essas tentativas patéticas de aproximação, simplesmente emudecia perto dela. Tinha um medo terrível que ela o rejeitasse e pusesse fim aquela amizade. Sonhava com ela em seus braços, queria tanto declarar que a amava, mas a realidade sempre lhe convencia que era melhor amar desse modo: em silêncio, só para si e dentro de si mesmo.

No ano seguinte, renovou a disposição de abrir o seu coração para a moça que não lhe saiu da cabeça durante os meses que durou as férias escolares. Tentou diversas vezes falar "eu gosto de você", mas som nenhum lhe saiu da boca. Nada. Tudo piorou, quando ele a viu de conversa com um cara que ele nunca vira na vida. Logo depois, eles estavam de mãos dadas. Maldição! O terror só não foi maior do que o dia em que soube que eles estavam de namoro firme. Daí em diante, a coisa toda só piorou.

A cada ano que passava, a cada época ou década nova, ele sofria e definhava. Terminada a época dos estudos, ingressou no mercado de trabalho - e como trabalhava, feito uma máquina - , envelheceu, mas nunca viu seu amar por aquela menina, aquela jovem, aquela mulher casada, aquela senhora, sequer diminuir. Para sua surpresa, o seu querer só mudava de forma, e crescia, crescia, crescia... Nunca casou, apesar de ter tido alguns namoros - um fracasso total na vida afetiva. Para ele, não havia substitutas para ela!

Para ela, claro, ele fora apenas um colega de classe. Vai lá, um vizinho de infância, talvez engraçado. No máximo, um fã. Nada mais, nada menos. Ela casara. Fora infeliz no primeiro casamento e mais infeliz ainda quando, aos 35 anos, tentara um novo relacionamento. Ele acompanhava tudo que acontecia com ela - mas, mantendo uma distância respeitosa, sem que ninguém percebesse o que habitava o seu mundo. Uma vez, brincou com um filho dela, quando, por acaso, encontrou mãe e filho, indo a uma festa de rua qualquer. Elogiou o menino, dizendo que ele seria um belo rapaz e tentou guardar na memória as atuais feições daquela menina que o mantinha cativo até agora. A vida a tornara uma mulher excepcional, rosto marcado pela dureza da existência que tivera - e a ele a vida lhe dera as costas. Ele existia sem viver.

Hoje, décadas depois do romance que não aconteceu, do amor que não se concretizou, ele estava de pé, olhando pela última vez para a razão da sua miserável vida. Sua paixão havia morrido. Soubera que ela havia morrido por seu vizinho que, quase sem querer, lhe contara que iria, à tarde, ao enterro de uma senhora. "Ninguém sabe como ela faleceu". Disseram que foi infarto, um mal súbito qualquer.

- Quem morreu?, perguntou, apenas por educação.

Quando ouviu o nome ser pronunciado, ele saiu correndo como só um velho de setenta anos pode correr e chegou à casa da única mulher que amara, em toda sua inútil vida, exausto e tentando disfarçar o que lhe atravessa o peito. Estava arfando e sua roupa, definitivamente, não era apropriada para a ocasião. Mas, não estava nem aí. Viu os familiares e amigos velando aquela que fora amiga, conhecida, mãe... e também amada em secreto. Ver Ana deitada ali provocou nele uma dor tão grande que pensou que ia cair. "Ah, como eu te amei... Ninguém te amou tanto quanto eu!" Estendeu sua mão e tocou em suas mãos, já rígidas. "Sinto muito o mal que fiz a nós dois... Sinto demais, por ter sido tão estúpido!" A visão da morte de sua amada doeu tanto que seus olhos lagrimejaram, um nó se formando em sua garganta.
Sentiu um desejo enorme de beijar sua face.
Mas, se conteve. Nisso ele era muito bom.

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