Transferência de dor

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Foi uma noite bem difícil. Acordava de instante em instante, imaginando quem poderia ser essa pessoa, que com certeza não vai com a minha cara em nenhum sentido. Já que não era o Cody Lee, estava sem opções no momento. Não sei se poderia ser alguém fora do colégio. Ou até mesmo da minha família. Não sei. Só sei que existe alguém que quer virar minha vida de ponta cabeça. Era cinco e quarenta da madrugada, e eu já estava acordado. Completamente chateado. Impaciente, pra ser específico. Há dois anos atrás eu me perdia em tentar obter muita paciência com o Cody Lee, pelo fato de que ele não me deixava em paz. Sempre procurava um jeito de me provocar. Podia ser com músicas, filmes, camida, roupas, matérias. Entre outras coisas. Tudo o que eu comia, ouvia, assistia e vistia, pra ele era de gay. "Bicha". Era como me chamava quando dava de cara comigo. Aquilo me irritava o tempo todo. Sentia uma imensa raiva que poderia sair fora de controle e revidar com socos na cara dele. Mas soube me controlar muito bem. Não era bem um tipo de controle, mas pra mim, ajudava bastante. Eu sempre soube que era errado, que era loucura fazer esse tipo de coisa, mas... Aos poucos, se transformou em vício. E com o passar dos dias, vivendo o que tinha pra viver, eu me mutilava cada vez mais. Todos me pediam para eu parar com os cortes, me dizendo "pare com isso! Isso não está te fazendo bem, pare!" mas eu nunca disse sim ou não. Nunca fiz promessas. Eu parava por mim, assim, como continuava. Dependia da minha realidade, de como todos me tratavam. Me perguntavam quais eram os motivos. Mas o silêncio sempre vencia. O choro sempre me afogava.

Ser diferente às vezes tem seus problemas. Todos nós temos. Mas ser homosexual... Nossa. Complicado. Você saber o que você é, saber que isso vai mudar sua vida para sempre, é muito difícil. Muito. Em nenhum momento, eu quero dizer que meus problemas são maiores do que os problemas das outras pessoas. Não. Mas cada um tem seu próprio ponto vista. Cada um, tem sua marca da vida.

Ninguém opta por ser gay. Ser gay é uma coisa que a gente vai descobrindo aos poucos. Alguns garotos sentem atração por garotas, e outros não. Eu tinha dez anos quando me descobri. Eu era obsecado por meu colega de classe que sentava à minha frente. Não sabia o que era estar apaixonado naquela época, mas sabia que o que eu sentia, não era amizade de escola. E eu não sabia o que fazer. Não sabia nem como agir. Chegava em casa, e minha mãe perguntava-me o que eu tinha feito de bom. "Comer". Respondia. Era biscoito de chocolate, frutas, docinhos e tudo mais. Sendo que na verdade, o bom era ver, ouvir e tocar Dylan Brady. O garoto que sempre fui apaixonado.

Quando Cody Lee começou com suas piadinhas sem graça, eu me sentia um total estranho no colégio. Ninguém me defendia. Só riam. Era o que sabiam fazer. Rir das situações dos outros. Minha professora de inglês, Dália, me ajudou no dia em que fiquei preso no armário do colégio por quase uma hora. Quando ela conseguiu me tirar daquela caixa de fósforo, ela tentou me ajudar com o que eu estava passando, mas eu não quis saber de ajuda. E mesmo assim, ela continou tentando. Mas eu não contava quem era que me fazia aquilo. Sentia medo. Medo do que Cody Lee poderia fazer comigo no dia seguinte. Mas... Como tudo na vida tem sua primeira vez, eu perdi o medo que sentia de Cody, e o transformei em ódio. Até hoje ninguém sabe que era ele quem me trancava nos armários.

Cody Lee minimizou um pouco seu preconceito, mas ainda é o mesmo idiota de sempre. De vez em quando, ele solta algumas piadinhas com alguns gays da High School Newt, mas recebe o troco de volta. Principalmente de mim. Como da última vez que estávamos na aula de educação física. Estava pronto para correr, quando ele chega ao meu lado e me diz que duas bichas que estudam a tarde venceram o campeonato de corrida na aula do professor David. Meio sem noção de ele me dizer aquilo, então o empurrei, derrubando-o no chão com toda a força que tinha. E ainda soquei a cara dele só no lado esquerdo. Três socos de vitória. Eu me senti tão vencedor nesse dia que até esqueci minha dor. Mas depois tudo voltou. Menos Cody Lee. Por isso pensei que tinha sido ele que ligou para minha mãe, inventando sobre Nick, no dia da confusão na cafeteria. Tinha dois anos que não ouvia piadinhas e chutes de Cody Lee. Era um verdadeiro milagre.

Raiva, dor, e medo. Era o que sentia. Ainda é. Transformava tudo isso em cortes. Uma transferência de dor que poderia tirar minha vida, mas que me acalmava desse inferno que vivenciava todos os dias. Era Cody Lee a minha preocupação. Era Cody Lee a minha raiva e choro. Era o meu verdadeiro eu, a minha dor. E agora? Vou presenciar tudo isso novamente? E a pior coisa é quando vem a recaída. É quando o peito aperta me fazendo chorar em silêncio.

IsaacOnde histórias criam vida. Descubra agora