32. Partida

134 13 0
                                    

— Arrumem suas coisas, meninos. Peguem o necessário — Robert dizia, enquanto caminhava para a escada.
É claro que Roy não cumpriu as 6 horas de repouso, bom, mais ou menos. Ele nunca conseguiria ficar todo esse tempo sem se levantar da cama.
Estávamos calados no sofá da sala. Lester e sua familia já haviam ido embora, e nos concedeu sua casa em Nova York até que pudéssemos encontrar outra.
Roy estava com a cara fechada. Ben e Liz despreocupados, e eu... Bem, o que eu poderia dizer? Tudo isso era minha culpa, afinal.
— Odeio isso — resmungou Roy.
Robert olhou de lado e não respondeu.
— Temos meia hora pra sair daqui — disse, subindo as escadas. — Comprei as passagens pela internet, não tem reposição. Não se atrasem.
Pelos cantos dos olhos vi um sorriso malicioso no rosto de Roy.
— Roy... Não complique — sussurrei. — Você vai poder voltar depois.
Ele revirou os olhos.
— É o melhor a se fazer agora — disse Ben.
— Pra você é fácil, Ben.

Subimos e arrumamos nossas malas. Roy permaneceu sentado.
Robert parou na frente de Roy e levantou uma sobrancelha.
— Está esperando que alguém arrume suas malas ou quer nos atrasar?
Roy com sua carranca, não conseguia encarar Robert. Olhava para baixo enquanto ele falava.
— Vamos, vai ficar sentado até quando?
— Eu não vou — disse, por fim. Pude sentir a surpresa de Robert, ele ficou em silencio por alguns segundos.
— Você só pode estar brincando.
— Não. Estou cansado de ter sempre que mudar de casa, cidade, país. Eu achei mesmo que estivéssemos nos estabilizado aqui. Achei que não precisaríamos nos mudar tão cedo, aliás, achei que não precisaríamos nos mudar mais.
— Você sabe que é sempre preciso. Sabe que as pessoas não podem nos ver sempre jovens.
— Só que dessa vez é diferente.
— Diferente como?
— Estamos isolados. As pessoas não nos vê com frequência, exceto pela faculdade, mas quando terminarmos, uma hora iriam esquecer.
— Podemos voltar um dia.
— Quando? Quando Veronika já estiver casada e com filhos? É a primeira vez que eu consigo me relacionar com alguém e você nem ao menos se importa com isso!
— É claro que eu me importo. Acha que estou feliz com isso?
— Se importa? De verdade? Tentou pensar em alguma outra alternativa? Ou só escolheu essa por ser mais fácil?
— Ok, Roy. Se há alternativas melhores, por favor, me diga. Estou aceitando sugestões.
Roy não respondeu e abaixou a cabeça, mal humorado.
— Eu espero mesmo que não esteja falando sério. 10 minutos pra sairmos.
Robert pegou as malas que estavam na escada e as levou até o carro.
— Não está falando sério, né? — perguntei. 
Roy deu de ombros.
— O que falou pra Veronika?
— Não falei.
— Não falou pra ela?!
— Odeio despedidas. Já que é pra não voltar mesmo... Vou poupar esse aborrecimento a mais.
— Roy, você vai poder...
— Não vou voltar, James — ele me interrompeu. — Não quero voltar. Não depois de tanto tempo como Robert planeja. Nem depois que ela já tenha estabilizado sua vida com outra pessoa.
Fiquei em silêncio, me culpando novamente. Não que ele estivesse colocando a culpa em mim, mas de fato ela era minha.
— Precisa ao menos falar pra ela...
— Ela vai me odiar de qualquer jeito. — Ele riu, sem humor.
— E se você se arrepender depois?
— É o que você está pensando de você? Sei que também está sofrendo com isso, pode continuar tentando esconder, mas a mim você não engana. Da mesma maneira que não vou poder mais ver Veronika, você não vai mais poder ver Dakota; a diferença é que eu tenho a chance de me despedir.
— Deveria aproveitar.

Ben e Liz sairam com suas malas de mão; Liz deu uma última olhada para a casa e suspirou.
Robert parou na porta e olhou para nós.
— Você vem? — perguntou ao Roy.
Olhei para Roy. Ele sabia que não era obrigado a ir. Na verdade, eramos uma família por causa disso: união; mesmo não sendo obrigados a nada, fazíamos por fidelidade e respeito.
Roy levantou sem dizer nada e caminhou até o carro, numa expressão carrancuda.
Robert e eu ficamos nos encarando por alguns segundos depois que Roy saiu, então me levantei e também fui até o carro, só sobrou o banco do passageiro pra sentar.
— Não se sinta obrigado, Roy — disse Robert, já sentado no banco do motorista. — Sabe que se quiser ficar, eu não posso impedi-lo.
— Eu vou. Mais difícil ainda seria me separar de vocês.
Vi o sorriso de Liz pelo retrovisor, olhei para o lado, e Robert também sorria.
Ele ligou o carro e fomos.
Iríamos voltar. Aliás, um de nós iria voltar, apenas para esvaziar a casa e colocá-la a venda.
Os carros ficariam para um amigo humano de Robert, que morava ha poucos km de Juneau.
Isso era muito deprimente, as árvores passando diante de nossos olhos, nossa casa se distanciando, sabendo que talvez essa fosse a última vez que a veríamos.
Entao percebi que ali estava ficando uma parte de mim. Não só Dakota... mas tudo que eu me tornei depois da minha transformação, tudo que eu descobri sobre mim foi ali naquela casa, em Juneau.
A caminho do aeroporto, tivemos que pegar um trecho de estrada na floresta, para cortar caminho, já que Roy tinha nos atrasado.
— Como vamos fazer com a faculdade? — perguntou Liz.
— Vamos transferir para a mesma faculdade de NY — respondeu Rob. — Talvez até James possa começar também; se ele quiser, é claro.
— Simples assim? — começou Roy. — levou décadas pra permitir que começássemos uma.
— Foi uma sugestão, Roy. Demorei um pouco com vocês por que tinha receio, mas foram vocês mesmo que me mostraram que nao preciso me preocupar tanto quanto a isso. 
—  Um pouco? — Ele riu.
— Roy — tentei falar, mas ele me interrompeu.
— Não, James. Desculpe, não estou sendo um idiota com você de novo, não leve para o lado pessoal. Só acho que foi injusto com nós. 
— Não preciso fazer agora também... Talvez ainda seja cedo, posso esperar mais alguns anos.
— Não se preocupe, James — disse Robert. — O problema é comigo.
Quando Roy abriu a boca para replicar, escutamos barulhos fortes, imediatamente o carro oscilou.
— Os pneus! — exclamou Robert. — Os pneus estouraram!
— Não pára! — gritou Ben. — É uma cilada!
O carro começou a perder a velocidade. Logo vimos um jipe atrás de nós.
— É o caçador! — Roy colocou a cabeça pra fora da janela. Então um tiro veio em nossa direção, e ele colocou a cabeça pra dentro subitamente. — Desgraçado!
— Acelera, pai! Acelera! — gritou Liz.
— Eu to acelerando! O carro não anda! Vou ter que parar!
— Não! — gritei. — Ficou louco? Continua! Ele não tá sozinho!
— Não dá! Eu vou parar e vocês correm! No três. Um...
— Eu não vou conseguir — disse Roy.
— Filho, você consegue! Dois!
— Não, eu não vou conseguir! Estou sem forças pra isso!
— Vai Roy, você consegue! Eu te ajudo se você não aguentar — eu disse. 
— Cara, eu não vou conseguir, é sério! Você não vai aguentar comigo.
— Roy, não tem jeito! É a única saída! Três!
O carro havia perdido bastante a velocidade, porém ainda continuava rápido. Robert virou ligeiramente o volante e fez o carro rodopiar. O que causou confusão suficiente pra atrasar o caçador.
Ben e Liz desceram do carro e correram. Eu desci e vi Roy caindo ao colocar o pé pra fora. Robert olhou pro lado e pensou em descer, mas acelerou o carro novamente. O Jaguar estava frente a frente com o Jipe, a poeira cobria os dois, então Robert bateu no Jipe e acelerou ao máximo, mesmo sem muita utilidade, isso atrapalhava quem estava dirigindo.
— Eu falei! — gritou Roy.
— Cara, cadê seus reflexos? — Peguei ele e o levantei.
Vi Liz parar e ameaçar voltar, mas Ben a segurou.
— Me Solta, Ben! Roy precisa de nós!
— Não, Liz! A ideia é todos correr!
— Exatamente! Inclusive Roy!
— Tira ela daqui, Ben! — gritei.
— Desculpe — ele disse. Pegou Liz pela cintura, jogou para cima dos ombros e correu. Pude ver Liz esperneando zangada, sem conseguir se soltar. 
Enquanto Robert tentava distrair os caçadores, eu tentava incitar Roy a correr.
— Cara, não é possível que não tenha mais forças que isso!
— Perca 80% do sangue do seu corpo pra ver!
Então escutamos um estrondo, um tiro pra ser mais específico. Só um.
Robert estava bem pra trás de nós, e o tiro era em nossa direção. Ele parou de acelerar.
Olhei imediatamente pra Roy, procurando aonde havia acertado. Ele olhava assustado pra mim, e havia sangue em sua camiseta.
Naquele momento me senti desconexo, e foi aí que percebi que o tiro não acertara Roy, e sim a mim.
Uma dor devastadora tomou conta de mim e eu cai no chão, Roy quase caiu junto, mas criou forças pra tentar me segurar, é claro que não deu muito certo.
Minha camiseta estava muito mais ensanguentada do que a de Roy. Aquele sangue era todo meu.
Roy falava algo, mas parecia que eu havia ficado surdo, momentos depois os sons começaram a voltar e eu pude entender o que Roy dizia.
— Levanta! Levanta! — Ele gritava.
— Corre, Roy. Se salve!
— Não vou sem você. Levanta, cara! Uma bala não faz isso!
Não era uma bala qualquer. Eu já havia levado tiro quando ainda era humano, e a dor não era a mesma.  É claro que um caçador não andaria com uma arma carregada com balas comuns, tinha algo a mais.
Olhei pra trás e Robert já havia descido do carro; estava correndo em nossa direção.
— Vai, vai, vai, vai! — Ele gritava para Roy.
Roy estava sem reação, mas com Robert o pressionando ele tentou correr, apoiando nas árvores.
Robert me pegou pelos braços e tentou correr também.
Um vampiro correr era moleza, mas dois juntos, não conseguíamos pegar velocidade; era quase inútil.
Ouvimos outros tiros, e agora eu sabia quando me acertavam, a dor era espontânea. Eu já nem sabia mais quantos buracos eu tinha, e nem onde eram. Só conseguia sentir as dores e o gosto de sangue na boca. Cai ao chão.
Nem Robert e nem Roy foram acertados. Somente eu, os tiros eram pra mim. Belas pontarias. O que me fazia questionar o quão inteligentes eram, por terem coragem de ferir só um do bando.
Percebi que Robert não iria tão longe tentando me levar, e eu podia sentir um ataque de asma se aproximar, o que iria dificultar ainda mais as coisas.
— Me deixa... — tentei dizer, espargindo sangue de minha boca. — Me deixa aqui...
— Não vou deixar você aqui pra morrer!
— Já estou morto...
 Roy também precisava de ajuda; mais do que eu. Ele não estava tão a frente de nós, mas tinha mais chances de sobreviver... Se me deixassem pra trás.
É claro que tudo isso não estaria acontecendo se fossemos como outros bandos. Robert tinha princípios, e aprendemos com ele a ter também; outro bando já teria matado aqueles caçadores, mesmo que pra isso custasse a vida de alguns do nós.
Um dos caçadores ria, — não era a voz de Harold — se divertia com a situação; talvez fosse esse o motivo por não ferir Robert e não ferir Roy que já estava comprometido. Ele queria nos ver tentando fugir.
— Vou dar a chance de fugirem, eu quero o vampiro novo! — Agora era a voz de Harold.
— Por que vai nos deixar fugir? — perguntou Robert.
Estávamos a uma boa distancia dos caçadores.
— Por que vocês não me fizeram nada; costumo dar uma chance.
— Não vai deixar fugirem, vai? — cochichou o outro caçador.
Então eu entendi. Era um teste. Eles começaram a andar em nossa direção.
Olhei pra trás e vi que Roy só estava em pé, por que uma árvore o segurava. Nem se Robert quisesse, não daria mais tempo de fugir. Ele ainda me segurava, e eu ainda estava caído ao chão.
— Só quero o mais novo... — Harold estava cada vez mais perto. E o caçador ao lado apontava uma espingarda na direção de Robert. — Ele já está quase morto mesmo. 
Eu não sabia se aquelas balas podiam de fato nos matar, mas acreditava que sim; não pelo modo como ele falava, mas pelo modo como eu as sentia, dilacerando meus órgãos.
A lanterna do Jipe refletia em nós, mas quanto mais eles se aproximavam, tampavam o reflexo da luz.
Comecei a respirar com dificuldade, procurando o ar dentro dos pulmões.
Então eles pararam em nossa frente; a luz não refletia mais em nós e sim em suas costas, agora podíamos ver seus rostos, assim como eles podiam ver os nossos. Harold franziu o cenho.
— Robert?!
Robert olhou pra ele, sem entender como ele sabia seu nome. Após alguns segundos, sua expressão se tornou clara.
— Harry? — perguntou confuso. E eu estava mais confuso do que ele.
— Não posso acreditar... É você, Robert?
— Sim... sou eu.
— Eu sabia que essa voz era familiar! Esse vampiro... ele faz parte do seu bando?
— Há quase sete anos.
A expressão de Harold era de decepção. Ele cultivara tanto ódio por mim naqueles dias, que parecia que sua felicidade dependia de me matar. 
Eles se conheciam, até pareciam ser camaradas; eu não sabia de onde e nem imaginava que isso fosse possível.
— Robert, eu não quero te machucar.
— Não precisa fazer isso.
Harold ainda apontava o rifle pra mim, queria apertar o gatilho, mas algo sobre Robert o impedia.
— Abaixa essa arma, Harry — suplicava Robert. — Ele já aprendeu a lição.
— Você não entende, não vim aqui pra dar lição. Não quero correr o risco de que ele chegue perto da minha filha novamente.
— Não corre o risco. Ele entendeu o recado.
— Quem me garante isso?
— Eu garanto. Só abaixe essa arma.
Harold pensou um pouco; olhou cuidadosamente para Robert, depois para Roy que ainda se segurava em uma árvore, e por último em mim... Relutou em abaixar o rifle. E eu ainda lutava pra respirar.
— Vou confiar em você, Robert.
O outro caçador olhou torto para Harold quando viu o rifle sendo abaixado, mas não retrucou.
— Não vai se arrepender — garantiu Rob.
— Tem sorte por nenhuma bala ter acertado o coração, garoto — disse Harold para mim. — Mas acredite, se houver um próximo tiro, eu não vou errar; vai ser certeiro.
Harold andou até o Jipe; o outro caçador deu uma última analisada em mim antes de segui-lo; devia estar memorizando meu rosto.
Assim que eles foram embora, Robert me ajudou a levantar, me levou até o carro e depois foi buscar Roy.
— Eu disse que não conseguiria... — comentou Roy, sentado ao meu lado no chão.
Olhei para ele, mas não conseguia responder; eu ainda buscava ar em meus pulmões. Estávamos encostados na lateral do Jaguar, enquanto Robert analisava os quatro pneus furados e ao mesmo tempo tentava ligar para Ben.
Não demorou muito até que Ben e Liz apareceram com o Audi. Liz desceu do carro com ele ainda andando e correu até nós.
— Meu Deus! — ela disse, pegando na camisa cheia de sangue de Roy.
— Não é meu... — disse Roy.
Ela olhou para o lado e me viu naquele estado; sem conseguir falar e cheio de furos.
— James! Onde está sua bombinha? — Ela começou a procurar nas malas; mas não estava lá, eu queria falar que não trouxe por que achei que não fosse precisar.
— Liz, ele não trouxe — disse Roy. — Robert já teria encontrado.
— Vamos sair daqui — disse Robert, me pegando. Ben ajudou Roy a ir até o carro.
Eu não sabia como estava suportando aquelas dores. As balas pareciam se aprofundar cada vez mais, e o meu peito doía de tanto que eu tentava puxar o ar; eu não sabia se era possível morrer assim, mas a agonia que isso me causava era algo que eu não conseguia explicar; lutar desesperadamente por algo tão básico, me fazia eu me sentir um inútil.
Chegando em casa, eu já não aguentava mais... Nunca havia ficado tanto tempo com crise de asma, nem sabia que conseguiria aguentar tanto.
Abri a porta e tentei correr, foi instintivo, é claro que eu não conseguiria, cai depois de três passos. É aquela sensação de necessidade de fazer algo com suas mãos sem que precise esperar que façam por você.
Ben me pegou no chão e me ajudou a entrar. Liz logo apareceu com a bombinha, e eu peguei de suas mãos como se fosse um diamante; eu ansiava por aquele simples aparelho mais do que qualquer outra coisa naquele momento.
Depois de algumas borrifadas, comecei a sentir os canais respiratórios se abrindo e o ar voltando.
Eu ainda sentia dor, e não respirava normalmente, mas aquela sensação de sufoco já havia passado.
Sem que eu percebesse, Liz havia saído e já voltado, com a maleta de primeiros socorros e algumas coisinhas a mais.
— O que é isso? — perguntei ofegante.
— Essas balas não vão sair sozinhas, James — disse ela, pegando um biscuri.
— Espera! Como vai fazer isso?
— Do modo prático. Não vou mentir, vai doer de qualquer maneira, então é melhor ir logo com isso, não acha? Vire-se.
Virei-me rigidamente.
— Quantas são? — perguntei, ofegante e agora com a voz trêmula.
Ela demorou a responder.
— Toma. Beba isto — disse e me passou uma garrafa. Everclear era o nome, e embaixo marcada 95% de teor alcoólico. Não iria fazer nem cócegas, mas talvez se eu bebesse a garrafa inteira...
Liz começou a retirar as balas e foi pior do que eu imaginava. A bebida fez um pequeno efeito, mas passou longe de amenizar a dor.
Enquanto Liz retirava as balas, eu bramia entredentes enquanto arranhava a mesa de jantar.
No total foram 17 balas.

Entre Nossas DiferençasOnde histórias criam vida. Descubra agora