Batismo de Fogo

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Não lembro muito de minha infância, porém me recordo com extrema precisão daquela deprimente cela em que fiquei confinado quando muito jovem, e, até então, não tinha nenhuma pista de quem eram meus pais, onde eu havia nascido e tão pouco que lugar era aquele.

A cela era horrível, escura, fria, e sem janelas; no lugar delas, existia apenas uma pequena báscula. O chão, feito de pedras musgosas, conseguia ser ainda mais frio do que o ar. Havia uma grande porta, sempre fechada, mas com uma abertura na parte superior, uma janelinha redonda, varada por três finas barras de ferro, e, mesmo que eu quisesse, não conseguiria alcançar a abertura para espiar por ela. Além disso, percebi que não estava sozinho: éramos dois naquela assustadora alcova. E a escuridão era constante.

Num primeiro momento, acreditei piamente que o mundo era aquilo. Passei dias encostado a uma parede, temendo uma agressão por parte de meu companheiro, que, em determinados momentos, se agitava nas sombras. Ficávamos cada um em um canto, evitando o contato físico. Bem depois, o temor começou a diminuir, apesar da respiração ofegante dele, que me deixava apreensivo.

Quando parei de me preocupar em ser morto, me dei conta da fome. Percebi que as inquietações do outro ocorriam devido ao mesmo problema, pois, com o tempo, também passei a sofrer dele. Não sabia até então o que era o desejo por comida. Minha barriga tremia e um desespero me dominava. Passados alguns dias, senti a presença de um outro ser. Por entre as barras ele lançou algumas coisas que possuíam um cheiro forte, quente e convidativo. Eu nunca havia sentido nada parecido e, por puro instinto, saltei sobre uma delas, porém, o outro foi mais rápido e, quando caí por cima dele, fui atingindo com um forte soco, que me lançou violentamente contra a parede.

A dor me deixou fragilizado, e a fome desapareceu por um instante, dando lugar as lágrimas. Fiquei imóvel durante horas, enquanto ele devorava toda a comida, resoluto. Pude sentir seu reconforto, o que foi muito estranho. Adormecemos. No meio do sono tive uma sensação, como se alguém estivesse me observando. O coração acelerou, me levantei. Pude ver, incrédulo, dois grandes olhos atrás das barras. Eram olhos vermelhos, vivos como fogo, e que de certa forma me transmitiram uma sensação de bálsamo. Rápidos como estrelas cadentes, eles se foram. Fiquei desnorteado. Era como se a alegria me fosse concedida e depois roubada. Então, novos pedaços daquela massa saborosa foram jogados através das grades. Pela primeira vez usei meus dentes, sentindo, enfim, prazer.

No dia seguinte, algo místico aconteceu: pela báscula, um forte raio de luz invadiu a cela, clareando as pedras do chão e nos deixando maravilhados. O que era aquilo? Finalmente, pude ver os contornos do corpo do outro, que era mais forte e mais alto do que eu. Ele se aproximou da luz e, com muito cuidado, colocou um braço dentro do feixe, espantado, pude ouvir em minha mente sua voz: "É quente e é bom!" Percebi que, misticamente, tínhamos algum tipo de ligação. Olhei fundo em seus grandes olhos verdes.

Então, um estranho barulho ecou fora da cela. Senti a presença de outros seres, que se acentuava à medida que eles chegavam mais perto. De súbito, a porta se abriu, revelando um grupo de guerreiros, todos vestidos com brilhantes placas de metal e usando elmos que escondiam seus olhos. Avançaram sobre nós, e com incrível facilidade nos dominaram. Fixaram correntes de ferro ao redor de nossos pescoços, e aquilo doía como sal em uma ferida.

Fomos conduzidos através de um corredor, onde tudo era novidade. As paredes, ricamente ornadas, eram o oposto das celas que se escondiam atrás delas. Mas nada me deslumbrou tanto quanto a visão que tive ao sair do corredor: uma imensidão azul-turquesa descomunal, sob a qual uma sublime cidade descansava; tudo feito de ouro e cristais; nuvens passeavam entre as majestosas construções, e a dor das correntes, milagrosamente, despareceu.

Minutos mais tarde, após subir uma grande escadaria e passar por multidões que nos ovacionavam, chegamos a uma espécie de praça suspensa, que possuía uma abertura no meio, ao olhar por ela vi, incrédulo, que toda a cidade flutuava sobre a terra. O lugar estava lotado, e, entre a multidão, pude sentir novamente aquele par de olhos vermelhos. Então nossos captores fixaram arreios em nossos corpos e, espantosamente, começaram a voar, nos suspendendo. Subimos rápido, tomados pelo medo porém impressionados com a grandeza da cidade que se agigantava.

Em certa altitude eles pararam. Os que carregavam meu companheiro se distanciaram, formando um círculo ao redor dele. Apenas um segurava o arreio. Eles o encararam e, segundos depois, cuspiram chamas flamejantes sobre seu corpo. Fiquei aterrorizado. O fogo rapidamente o envolveu, enquanto ele gritava em pranto. Soltaram o arreio e ele despencou, caindo pelo céu como um meteoro; restos carbonizados passaram pela abertura da praça, expelindo uma fumaça negra que deixou um rastro lúgubre pelo céu, e em segundos desapareceu lá em baixo. Tristemente, senti uma parte de mim se perdendo.

Não tive muito tempo para me lamentar, pois logo o mesmo aconteceu comigo. Não tenho palavras para descrever a dor que o fogo provocou, e, quando me soltaram, a queda não ajudou a apagá-lo. Virei de ponta cabeça e mergulhei rumo à terra desconhecida, eu era apenas sofrimento. Por que haviam feito aquilo conosco? Qual era o sentido? A medida que me aproximava da praça alguma coisa começou a nascer dentro do mim, uma espécie de força, uma energia que confrontava as chagas do fogo, subitamente, senti mais uma vez a presença daqueles olhos e meu coração disparou. Vi as multidões lá em baixo e, misteriosamente, pude sentir o coração de todos eles batendo no meu peito. Então, em uma explosão de libertação, abri minhas asas e enverguei meu corpo, passando rasante por sobre a multidão. Naquele momento, amigos, me tornei um Dragão.

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Batismo de Fogo (Conto - Parte Única)Onde histórias criam vida. Descubra agora