Prólogo

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15 de Fevereiro de 2007, 07:30 pm.

"Só mais um dia", pensou.

Fitava as grossas gotas de chuva que batiam violentamente na janela. A tempestade já durava mais de uma semana. A menina com o cenho franzido parecia bastante zangada com o que acontecia lá fora. No entanto o que lhe causara a cólera estava dentro de casa.

-"Só mais um dia e estarei longe desse inferno!". Vociferou enquanto um raio cortava o céu e iluminara todo seu quarto.

Sabia que não adiantava gritar. Eles não a ouviam, nunca a ouviam. No começo achava que era muda, abria a boca, mas as palavras não tomavam forma em sua língua. Logo depois, descobriu que apenas a ignoravam.

As persianas estremeceram, um trovão de arrepiar os pelos se fez ouvir. Pensou com prazer perverso todas as coisas que tinha feito às humilhações que concedia a todos, o rosto do seu pai transfigurado pela decepção.

Não se importava com as consequências desastrosas de seus atos. Queria a atenção que merecia. Sua rebeldia ao extremo não acertava somente o seu alvo, mas também tudo o que estava em sua volta. Ela era a bomba que poderia explodir a qualquer momento. Assim ninguém a queria por perto.

Mas tudo tem limites. E o seu já havia esgotado. A carta convite do Internato para meninas Hastings Hills havia chegado há duas semanas. Eles não estavam a mandando embora de sua casa. Eles estavam a apagando de suas vidas. Sakura tinha passado dos limites e sabia que não teria volta. Todas as chances foram perdidas.

Os olhos esmeraldinos marejaram, as lágrimas corriam livremente contornando sua face e caindo no assoalho polido de seu quarto. Ex- quarto. Estava indo embora e não sabia a data de regresso.

Sakura podia agora ouvir o som abafado do disco do James Brown vindo da cozinha. Mebuki e Kizashi estavam indiferentes com o que aconteceria no dia de amanhã. Porém sabia do fundo de seu âmago que sua mãe estaria com os olhos vermelhos e com a mente turva e seu pai estaria com a mandíbula trincada de raiva, frustração, desgosto.

Seria seu ultimo Jantar em família. Sim, em todos os aspectos.

Fitou pela ultima vez a tempestade que se desenrolava lá fora. Seus pensamentos logo foram ocupados pelas preocupações banais do dia seguinte. Se a chuva continuaria torrencial e alagasse todas as ruas da cidade ou se já não a tivesse feito a impedindo de pegar a estadual para o aeroporto internacional- não queriam que ela continuasse respirando o mesmo ar conterrâneo-. Torcia mentalmente para que nada a impedisse de sair daquela cidade grande, suja e que não a queria. Sentiria falta dos amigos, apesar deles estarem em situações piores do que a dela. Considerava-se uma anomalia da sociedade, fora do normal, mas que dava pra conviver- ou não.

O disco do James Brown havia parado. Isso era sinal de que Mebuki tinha terminado de fazer o jantar e não tolerava nada que atrapalhasse o momento sagrado da família. O que agora era apenas uma tradição, não, uma rotina, que ninguém se importava. O cheiro de carne de panela com batata e cebola - sua comida predileta - subia as escadas e entrava no quarto sem consentimento. Para eles poderia ser algo como uma última memória da doce e inocente Sakura que amava carne de panela como se fosse a única coisa interessante do mundo, para ela era uma afronta. Eles não se importavam, não mais. Pra quê então? Somente para lembrá-la a da antiga vida confortável e despreocupada? Do que adianta tentar relembrar o doce passado para horas depois lançá-la num futuro incerto?

Cansada de chorar e lamentar a vida de merda que tinha, foi se arrumar para o jantar. Soltou os cabelos rosados - fruto da ultima loucura- que caiam livremente até a base das costas. Os olhos não mais vermelhos tinham agora um brilho pós-choro. Decidiu ir da forma que estava. Não queria que fosse como uma despedida. Afinal, já havia saído dali a muito tempo e só agora tinha notado.

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