Voltava do trabalho quando,no caminho,vi que os tristes olhos verdes se dirigiam a todos os passantes através das grades da gaiola,na frente da Pet Shop.O vendedor parecia bastante tenso,talvez quisesse concluir a doação antes de voltar para casa,talvez já conhecesse Lyah.
- É fêmea - foi a primeira frase que ele nos disse, como a abster-se de qualquer culpa e já sem esperança de conseguir libertar-se.
- Vou ficar com ela - o surpreendi, pondo os dedos por entre as grades para acaricia-la.Uma gatinha preta com ares místicos.Uma fofa!
- Amanhã passo por aí - desfiz o sorriso do rosto do vendedor,pois que ainda necessitava consultar "O conselho".
"O conselho" se resumia em minha mãe e o restante da família numa longa e filosófica discussão sobre o motivo de não podermos ter um gato.Uma gata,em realidade,o que dificultava ainda mais as coisas por envolver o processo cruel e necessário da castração.
Depois de várias promessas tão inquebrantáveis quanto feitas com os dedos cruzados às costas,ficou decidido que ela ficava.
A chamamos Lyah e quanto à grafia do nome,menos numerologia do que pura estética."Lyah é mais chique" minha irmã dizia e eu também concordava.Tinha estilo.
Aos poucos fomos tendo amostras de seu comportamento nada convencional,nada do que esperávamos.Objetos quebrados,travesseiros e sapatos mordidos,rasgados,dilacerados,sujeira a cada instante e que,para cumprir nosso pacto tínhamos que limpar.Nada agradável.
Vale destacar que nos arredores do bairro onde morávamos, os gatos pretos eram bastante utilizados por pessoas,pseudo-praticantes das religiões que nos legaram os africanos.Pessoas mentalmente perturbadas que convertiam os pobres bichanos em alvo de suas perversas insanidades.Dizia-se - e ainda é assim - que nas sextas-feira treze os gatos pretos de estimação deveriam ser mantidos em casa,para seu bem-estar.Era uma época propícia para que os insanos os coletassem ou para que os ditos normais tivessem seu momento de ouro para descontar nos pobres animais um medo infundado do desconhecido.O único dia da temporada de caça aos gatos pretos.
Alguns seres aos quais tento atribuir um resquício de racionalidade e vê-los fora da linha de tempo onde restaram os neanderthais,fazem o seguinte juízo : animais sacrificados,torturados em determinadas luas,determinados eclipses,dias de divindades,são capazes de lhes dar o poder necessário para que modifiquem a vida de outrem a seu bel-prazer: insiram uma doença aqui,uma desavença ali,um aborto.Mal sabiam eles sobre verdadeira e antiga magia.Engraçado o riso abafado que me provocam,mas falávamos de Lyah.
Não foi em nenhuma sexta treze ou outubro trinta e um que ela sumiu de nossa casa,mas preocupamo-nos.Não havia dado tempo sequer de fazer a castração.
Lyah! Um vaso quebrado. Lyah! Os livros derrubados da estante. Lyah! O copo de água entornado sobre o notebook recém-adquirido. Lyah! O arranhão cuja marca tenho até hoje,caso queiram comprovar.A cruel cegueira do nosso dócil cachorro.Agressividade crescente e gratuita.Infundada.Aterrorizante.
Estaria mentindo se dissesse que senti saudades,porque senti alívio,como se uma presença muito densa e muito negra como seu pelo, houvesse deixado de circundar a casa naqueles tempos que também foram os tempos da minha perdição.
Notícias de morte à meia voz chegavam em nossos ouvidos.Não mortes comuns,mas daquelas que se dizem obra de psicopatas,assassinos em série.Dizem que isso não é comum no país,mas a grande verdade é a incompetência da polícia,brilhante em não enxergar nexos entre um crime e outro. As vítimas eram encontradas sempre com um estranho símbolo gravado com material perfurante em suas testas.A cabeça,aliás,era a única parte que o assassino deixava para trás,os olhos bem abertos como se a última visão houvesse sido o que há de mais hórrido neste mundo de exílio,as mandíbulas pendentes e estarrecidas.