Prólogo

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DESDE SUA INAUGURAÇÃO, NOS anos cinquenta, o parque do Ibirapuera, na cidade de São Paulo, nunca tinha sido palco de um acontecimento semelhante. Embora já tivesse testemunhado diversos eventos artísticos, paixões surgirem e acabarem, a satisfação de um passeio num dia ensolarado, amizades fortalecendo-se e sendo alimentadas e até mesmo coisas piores como crimes, aquilo era totalmente inédito.

Já passava da meia-noite, e os únicos habitantes presentes eram alguns patos no famoso lago, outros animais terrestres escondidos entre as vegetações e pássaros que repousavam tranquilamente nos galhos entre as árvores dos mais diversos tipos que deixavam o ponto turístico paulista ainda mais verde, e um ou outro guarda que perambulava entediado com mais um turno de trabalho sem dar muita atenção à calmaria da madrugada.

A inquietação começou numa área mais aberta. A grama brilhante bem cuidada refletia, de alguns ângulos, o luar prateado do céu estrelado. Embora a poluição da grande metrópole impedisse que as estrelas aparecessem como antigamente, naquela noite da década de noventa elas pareciam mais brilhantes, como se estivessem menos tímidas. Ou como se brilhassem ao longe, de outra dimensão...

A grama tremeluziu como se uma forte rajada de vento tivesse passado por ela, porém não houvera nenhum movimento do ar. As aves que até então permaneciam em silêncio nos galhos das árvores ao redor daquela clareira começaram a se agitar, provocando um farfalhar de folhas que subiu noite afora. Os vigias estavam longe da área aberta naquele instante e não viram quando os pássaros levantaram voo e desapareceram no céu, fugindo de algo que só eles mesmos haviam sentido.

Em seguida houve uma implosão em pleno ar. Um ruído seco e abafado de algo que parecia ter implodido. Era como se um saco cheio de ar estourasse, só que para dentro, pouco mais de um metro acima do chão.

Então, muito gradativamente, muito devagar, como se viesse de bem longe e sem pressa, uma luz embranquecida começou a surgir. Ela aparecia lentamente e ia aumentando a cada segundo, como os faróis de um carro que se aproxima numa estrada. No entanto, a estranha iluminação surgia no meio do nada, em pleno ar.

Aos poucos, algo pareceu se formar ali. Não chegou a solidificar-se. Era semelhante a um holograma e só podia ser visto se seu observador ficasse se movendo de um lado para o outro sem realmente olhar. É como quando vemos algo pelo canto do olho que, visto de outro modo, parece não ter a mesma aparência.

Poucos segundos depois, enquanto a luz aumentava de intensidade e emanava claridade por toda a extensão da clareira, algo no formato de uma porta apareceu. Parecia estar ali e não estar ao mesmo tempo, como em um sonho. E somente podia-se ver o umbral. Além dele, via-se o outro lado do parque.

Mais uma vez a grama farfalhou como se tomada por uma ventania repentina. Algumas folhas soltaram-se de seus galhos e rodopiaram no alto antes de pousarem levemente no chão. Tudo pareceu quieto outra vez, mas o umbral fantasmagórico continuou no mesmo lugar e então algo mais aconteceu...

Uma sombra começou a se formar sob a luz branca que vinha sabe-se lá de onde. O vulto negro cresceu até que tomou uma forma indistinta e atravessou a passagem que se abria no meio do parque paulista mais popular. Entretanto, ao passar para o lado de fora do portal, a sombra já não era mais tão disforme: era um homem. Alto, de porte normal e cabelos loiros curtos bem aparados. Tinha olhos tão verdes que se assemelhavam à luz que brilhava na porta sobrenatural atrás de si.

Ele ficou imóvel por um momento, olhando para o chão, e então levantou a cabeça lentamente, absorvendo a visão ao redor. Sua expressão era indecifrável: impossível dizer se estava espantado ou feliz. Seus olhos claros percorreram as árvores na extremidade da clareira e ele voltou-se para a porta, observando-a. Inclinou a cabeça levemente para o lado e um sorriso partiu seus lábios. Agora, parecia satisfeito.

Suas roupas eram muito antigas. Consistiam de uma calça escura e uma espécie de colete de couro esverdeado com uma abertura em formato de V na área do peito que entrelaçava seus dois extremos com um cordão que terminava num laço. Nos seus pés, o homem vestia um par de botas.

Baixou o olhar para suas mãos e observou um papel que segurava entre os dedos. Abriu-o e ficou examinando-o por poucos segundos, como se certificasse de algo. Então sorriu mais uma vez, guardou o papel num bolso traseiro da calça escura e começou a caminhar. À medida que se distanciava, o brilho no umbral da porta pela qual tinha saído começava a diminuir. Até que sumiu por completo e só o que sobraram foram o silêncio da noite e a escuridão anterior que só era interrompida pelo luar e pelas poucas estrelas no céu.

O estranho caminhou pelo parque sem rumo, pois não sabia aonde queria ir, observando tudo. Em todo o seu caminho, deu a sorte de não ter encontrado nenhum guarda, mesmo ao chegar a um dos portões de entrada e saída do parque. O vigia responsável por aquela área aproveitava a calmaria da madrugada para tirar um cochilo em sua guarita logo ao lado da passagem gradeada.

O homem que saíra da porta brilhante caminhou lenta e calmamente até o portão. De um modo gracioso e assustadoramente silencioso, escalou-o e pulou para o outro lado, pousando no chão de pedra sem produzir o menor ruído.

Ele caminhou, distanciando-se da entrada do parque e fundindo-se à paisagem mais urbana. Entrou em uma avenida asfaltada que não tinha muito movimento devido ao horário e caminhou pela calçada, observando fascinado cada veículo iluminado que passava ao seu lado, cada poste com uma lâmpada amarelada brilhante e cada prédio dos milhares que surgiam enquanto se aprofundava na cidade.

O andarilho sorriu satisfeito mais uma vez. Aquele não era o seu mundo. Tudo ali era muito diferente do que aquilo com que estava acostumado. Mas isso não significava que já não tivesse visto aquelas coisas antes. Ele estudara por muito, muito tempo.

E agora finalmente conseguira.

Havia cruzado a barreira entre dois mundos.


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⏰ Última atualização: Sep 22, 2015 ⏰

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