Psicologia de um Vencido

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Parado, ali permanecia. Preso a uma cadeira revestida de metal, enferrujada. Suas mãos suavam, fruto da ansiedade com a qual convivia dia após dia. Não carregava consigo qualquer curiosidade sobre seus dias posteriores, sem nutrir expectativa alguma sobre seu projeto de futuro, ou sobre a sua futura não existência. Para ele, a morte era apenas um iminente alívio que tardava a chegar.

O que restava naquele momento? Talvez mentiras, decepções, e também uma angústia intragável, como que misturada com doses cavalares de insatisfações não externadas. Tudo o que mais desejava era um momento de explosão, uma oportunidade de rasgar o manto de sujeira que compreendia seu passado, tudo aquilo que fora acumulado em tanto tempo de submissão.

Mas como sabemos, a fúria é passageira. Era tudo uma simples questão de deixar o calor do momento fluir e então desaparecer, assim como estrelas cadentes que rasgam o céu em um momento de glória e logo deixam de fazer parte do ambiente. Porém, a fúria não parecia querer ir embora. Talvez ela não tivesse vontade própria (e creio que os sentimentos não têm), mas o seu domínio sobre aquele homem era tão extremo quanto o verdadeiro sentido que a própria palavra poderia expressar, em seus ímpetos mais selvagens. Isto era ele, um ser dominado pelos seus instintos, assim como um animal, agindo unicamente pelos seus sentidos, abraçando a irracionalidade que talvez não fosse uma característica humana, ou seria?

Era como esmurrar uma faca. Socando o vento, lutando contra ninguém. Não existiam alvos de carne, não havia um bode expiatório pronto para ser castigado em troca de nada, era uma batalha inútil, com somente uma vítima e um agressor: a própria consciência, a mesma pele. E contra isso, não constavam argumentos. O que dizer de alguém que abraça instintos animais, buscando consequências que talvez nenhum deles fosse capazes de suportar? Você sabe, animais não costumam ser autodestrutivos. Pelo menos é isso o que a natureza costuma dizer, como nos é mostrado em todo aquele didatismo sobre as leis da sobrevivência e da perpetuação das espécies.

A parede levara seu primeiro golpe. Branca, com o reboco já desgastado, estampada de respingos assimétricos e forjada em sangue, rubro.

Ao final do quarto ou quinto soco, seus punhos bambeavam, quase roxos, implorando por uma pausa. Sua cabeça encarava o piso do chão, já batizado de vermelho. Uma gota tocava o solo. Desta vez não fora sangue, mas sim uma lágrima, tímida.

Com as costas das mãos, enxugava os olhos marejados, e voltava a esmurrar o concreto.

Num instante, passado o ápice de sua fúria indesejada, recolhera os braços, prostrando-se ao chão e desabando em pranto.

- Eu só queria... viver! Não sobreviver, não existir! Viver! - bradava aos quatro ventos, ciente do silêncio que se sucederia logo após, talvez esperando por uma resposta, na pequena parte de sua mente que ainda carregava um pouco de fé.

Mas ninguém nunca respondia, e não seria diferente desta vez.

E a processo se repetia, dia após dia.

Que fim levaria aquele homem? Provavelmente não duraria muito, isso era certo. Ciclos de autodestruição nunca terminam em si mesmos. Eles sempre se expandem, se excedem, sempre incisivos, impulsos cortantes que costumam deixar marcas não lá muito agradáveis.

Suas marcas eram tantas que fariam inveja a escravos e servos desobedientes do período colonial. Um homem que morre sem cicatrizes é um homem sem histórias, diria ele. Antes enfrentar a derrota pelas próprias mãos do que pelo punho de outros, antes ter em si o céu e o inferno do que encarar a humanidade através de uma ótica maniqueísta.

Quero ser aquele que amarra a corda até o ponto do sufocamento, aquele que prepara a velha cadeira de madeira, aquele que em passos calmos sobe na mesma cadeira e pula, rumo à morte, rumo à perdição eterna. Quero com minhas próprias mãos construir minha derrocada, pensava.

Levantou-se em meio ao chão empoeirado, com as mãos e o rosto batizados em lágrimas e sangue e subiu as escadas que o levavam até o interior da morada onde vivia. A garagem permaneceria daquela forma, marcada, puída, com as paredes desgastadas e com um cheiro de gasolina vencida.

Qualquer dia desses colocaria fogo em tudo, presenteando a si mesmo com o pior tipo de morte possível. Isto é, se tivesse mesmo coragem pra tanto.

Caminhou até o banheiro com a porta de madeira surrada e devorada por cupins em sua extremidade inferior. Se alguém encostasse a cabeça no chão e olhasse pela fresta irregular, era possível ver com clareza quem quer que estivesse do outro lado tomando banho ou fazendo qualquer outra coisa.

Girou a torneira do chuveiro e entrou debaixo d'água ainda vestido, deixando escorrer as gotas salgadas e avermelhadas de seu rosto. Sentou-se no piso do chão e colocou a cabeça entre as pernas, ainda observando todo aquele fluxo transparente que escorria indefinitivamente.

Pensava nas oportunidades que perdera, nos erros que cometera e principalmente na vida que desperdiçara.

Era tarde demais para voltar atrás.

Terminou seu banho com uma sensação amarga na garganta. As marcas em suas mãos tinham ganhado novos contornos, novas formas, novos escritos. Talvez não fosse possível ler seu destino a partir daquilo, talvez seus rabiscos confundissem até a mais habilidosa das ciganas. De qualquer forma, a leitura era feita pela palma e não pelas costas da mão, e ele também não perderia seu tempo com uma baboseira daquelas.

Jogou suas roupas usadas no canto da parede na entrada do banheiro e alcançou a toalha pendurada no suporte em frente à privada.

Secou-se enquanto observava a água que escorria até o ralo fétido. Deveria ter limpado o banheiro no final de semana passado, o cheiro que emanava entre as paredes era tão desagradável que irritava a pele do rosto. Tufos de cabelo grosso pendiam abaixo do metal que escorria a água, quase entupido. Era a coisa mais nojenta possível, limpar tudo aquilo sem ao menos desmaiar. Exigia uma força de vontade para o útil que ele simplesmente não possuía no momento.

No quarto, jogou a tolha sobre a cama e se vestiu com as primeiras peças de roupa que encontrou. Encarou o espelho do guarda-roupa e penteou o cabelo com as próprias mãos.

Guardou as chaves no bolso e, enquanto saía de casa, preparava-se para mais um dia intragável em seu risível sub-emprego.





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⏰ Última atualização: Jun 21, 2018 ⏰

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