O MAR ERA UMA COLCHA DE SEDA PRETA ALINHAVADA PELA ESCURIDÃO DA PRAIA. O dia findou-se a muito tempo, as horas ventilavam uma meia-noite fria e os olhos ávidos que percorriam o desfiladeiro procuravam febris um movimento sequer na vastidão molhada e antiga da água que irrompia ritmicamente logo abaixo, quando o oceano acariciava as pernas nuas das pedras.
O tempo traia tudo e todos. Alguns mais do que outros, essa era a verdade e ela não sentiu a chuva fina que esfriava seus ossos salientes. Abraçou-se e pensou ter notado um movimento na superfície da água. Esperava a tanto tempo por ele que não sorriu quando o movimento se repetiu, uma ondulação suave, como se algo nadasse próximo ao topo do mar. A onda morna ficou visível junto com o vento frio que fustigava fortemente com o chuvisco o seu rosto. Pareciam com areia molhada, mas ela não se mexeu um instante sequer. Esperava, como sabia. Esperava sua Presença a quatorze anos, quando O viu pela primeira vez, num assombro de sangue e dor, como se ele fosse uma anunciação a seus anseios, seus desejos.
Tinha treze anos na época, um corpo esguio e forte devido as constantes explorações da praia próxima a casa de seus pais. Vivia muito tempo solitária, imersa em livros e nas atividades da casa. Seus pais eram dois artistas que se recolhiam aos seus ateliês 2 vezes ao ano para produzirem novas telas e ela estava sempre ali, como uma muda de roupa. Uma professora particular cuidava de sua educação e ela os deixava em paz produzindo, era o trato tácito. O restante do tempo, ela usava explorando aquela região inóspita. As falésias ao sul da propriedade a fascinavam com sua aridez.
Numa tarde de 1944, ela estava como sempre perdida em seus pensamentos, olhando o tempo passar como uma variação de temperatura e fixou seu olhar no mar verde escuro, notou aquela ondulação pquena a princípio, depois grande se aproximando da praia, como se uma baleia estivesse vindo dançar na areia. Esperou excitada e viu algo como um colosso ser vomitado aos poucos das águas salgadas.
Perto de uns dezesseis metros de altura, com grandes braços e pernas fortes, sua cabeça era uma espécie de triangulo, como uma cobra, traindo sua origem reptiliana, possuia quatro chifres ou antenas, nunca soube ao certo, olhos amendoados com duas peles que os cobriam, uma grossa da mesma cor de seu corpo e uma transparente, que os protegiam, suas costas eram encimadas com sete protuberâncias como se fossem crinas eriçadas. Escamas esverdeadas cobriam-no, brilhando. Uma cauda quase do mesmo tamanho que ele estava saindo do mar qual um véu de noiva. Movia-se graciosamente emitindo grunhidos profundos e então cavou um buraco que mostrou a entrada de uma caverna no pé do desfiladeiro e então sumiu da visão dela.
Ficou ali até quando aguentou, mas a fome falou mais alto e ela teve que voltar relutantemente para casa. Chegou e saiu esbaforida. Quando cretornou, era como se nada tivesse acontecido no lugar. A maré trazia a normalidade e as ondas varriam o lugar onde antes estava a criatura.
Ano após ano ela se grudava as pedras como um musgo ressecado. Voltavam sempre nas mesmas épocas do ano, inverno ou verão. Seus pais ausentes logo a deixaram aos cuidados da criadagem, que assumiram sua educação. Para aproveitar seu tempo, fazia desenhos da paisagem, empregando cores contrastantes que logo foram emolduradas, era uma promessa diziam.
Fez tantos aniversários que pensou que sua vida era decidida pelas pedras que dançavam lá embaixo na poça do mar infinito.
Assim como o mar, se tornou fértil, produzindo telas onde sua marca registrada era uma ondulação negra nas águas de cores multifacetas. Nunca sentiu apego a nada, admirava aquela paisagem, como quem espera o namorado voltar e então amar como nunca tinha sido.
A passagem da morte entrou pela porta da frente, primeiro bateu forte, levando seu pai e logo após sua mãe, era já responsável por sua vida e reconhecida como artista plástica. Suas aparições em público eram raras, nunca naquelas estações onde esperava encontrar o Chamado.
A manhã de seu corpo passou e chegou o entardecer. A meia idade lhe entregou tintas carregadas de metal. Nunca mais viu o Colosso que saiu do mar. Desceu várias vezes para a enseada que se abrigava logo abaixo dos dentes de pedra. Ensaiou uma escavação, que foi taxada de loucura ou excentricidade por todos que redundou em milhares de cédulas jogadas ao vento e na certeza de que sua vida foi dedicada ao vazio.
Saiu de sua reclusão exaustiva e adquiriu um gosto estranho por objetos jurássicos. Os anos se apertaram em volta de sua garganta e por fim voltou ao lugar onde era feliz, aquela casa.
Naquele dia, chovia fracamente, logo serviriam o jantar, mas ela rabiscava a mesma paisagem que a tornou famosa, quando notou ao longe a conhecida ondulação, retesou-se e veio para a borda do desfiladeiro, sua visão não era mais tão boa como quando era criança, mas não restava dúvidas: o Colosso voltava. Um sorriso alegre passou por seus olhos, sua boca era um esgar de incredulidade. Antevia uma felicidade que nunca sentira. O despertar da razão gera monstros sabia, mas, e o despertar do sonho configurava o que? Tremores era sua resposta.
Nada de dúvida. O monstro levantou-se das águas e caminhou em sua totalidade para a praia logo abaixo. Sua silhueta mesmo tão longe tinha uma imensidão de mar. Grunhidos que lembrava uma criança insatisfeita. Seus detalhes eram refrescados em flashback. Quando ele chegou perto, sentiu seu olhar dirigindo-se ao ponto em que estava. O olho dele era uma Lua envidraçada que invadia. Seu cheiro era de algas e carne crua lavada no oceano. Virou-se e escavou o mesmo lugar de tantos anos atrás.
A mulher agora encharcada recuou um pouco, numa mútua descoberta enquanto o Colosso arrancava toneladas de areia revelando o que parecia uma caverna. Grunhiu e recebeu de volta o mesmo som.
Duas formas escuras se moviam naquela distância desbotada de areia e pedras, como girinos gigantes. O gigante abriu sua boca e os recebeu como um beijo materno. Demorou-se olhando o buraco enorme e por fim recuou cobrindo-o daquelas partículas de rochas desegradadas que os milênios depositaram aos pés da terra firme. O abismo molhado se interpôs entre eles, findando tudo.
Novamente o lume da janela da alma do Colosso se deteve sobre a mulher, como se a cheirasse atestando sua familiaridade. Fungou resoluto vapor salgado e pôs-se a caminhar de volta ao mar.
A última coisa que a mulher viu foi a oscilação vaga do oceano que se abriu para receber seus mistérios. A penúltima coisa que a mulher sentiu foi sua finitude desejando ter mais quarenta e cinco anos para testemunhar a volta do único ser que ela amou de verdade.