(2001) Eddie: Agora você está comigo?

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"Adeus, meu amor/A esta hora amanhã/Terá terminado"

Terminou. Missão cumprida.

Notei isso quando a sua mão soltou a minha. Ela já havia feito isso antes na última semana, claro, mas hoje foi diferente. Entramos no quarto juntos, pois fizemos tudo juntos nos últimos dias, e então suas lágrimas começaram a correr, ela deu um passo cheio de assombro em direção à cama e a sua mão soltou a minha.

E, dessa vez, eu sabia que ela não ia voltar.

Ok, Eddie, então vamos ver como você se meteu em mais essa.

A vida andava boa pra caralho. Não sensacional. Não incrível. Decididamente não perfeita, mas vamos falar sério? Quando é que ela foi perfeita? Nunca. E é bom que se estabeleça certas coisas, com trinta e quatro anos na cara já é hora da gente se dar conta que perfeição não existe. Então minha vida estava boa pra caralho e me contentei com isso porque não dá para voar em direção ao sol se as suas asas são feitas de cera, e a chamada veio dela mesma, a pessoa mais sábia que existe nesse mundo. Desci quebrado do avião, a cabeça zoada do fuso, e dei de cara com a menininha mais linda do planeta no colo da Malu, com aquele sorriso que te renova, sabe? Malu me entregou a Emily, como quem diz "Primeira vez que você volta pra casa e sua família está aqui. Agora com licença que vou ficar com a minha".

E é isso mesmo. Tenho uma família. Tenho uma pessoa que vale pelo mundo todo junto. Eu e Emily chegamos em casa e o apartamento estava vazio e totalmente diferente. Rê tinha colocado um buda feio pra cacete na estante da sala, uns porta-retratos novos e havia umas duzentas plantas na varanda. Cheguei em casa e tinha lençol na cama e comida dentro do prazo de validade na geladeira. É verdade que, por comida, eu quero dizer mato, mas ainda assim meu apartamento estava habitado. É, estava com a minha família, e a minha vida era boa pra caralho. Lembrei que, antes de viajar, eu e Rê ficamos de resolver como seria o "a gente" quando eu voltasse. "A gente" queria dizer "gente", e isso fechou a questão.

E então Saint-Malo resolveu nos submeter a mais um teste. Ele é assim, ele nos deu, mas ele quer sempre saber se estamos à altura. Mal e mal, estávamos nos aguentando. Eu e Tom estávamos brigados há um ano e meio, mas de alguma forma eu estava com a sensação que isso ia mudar, sabe? Que de repente passasse com o último show, o fechamento e ao mesmo tempo a lembrança de como a nossa amizade começou, para início de conversa. E não conseguia entender como um cara que lutou tanto pela família dele não podia se conformar que eu lutasse pela minha. Não ia abrir mão, mas podia esperar, paciência é mesmo uma das minhas poucas qualidades e, se tem uma coisa que eu sei, é que a capacidade de babaquice do Tom é proporcional ao tamanho do seu coração. Tom é uma criança subitamente largada na vida adulta, ainda na ilusão de que o mundo foi construído pra satisfazê-lo, mas, quando você precisa de verdade, ele é ponta firme até o fim. Isso foi uma das milhares de coisas que me derrubaram quando a gente soube do acidente. Sou paciente, sou tranquilo, raramente perco o bom humor, mas não lido bem com morte. Duas coisas me puxam pela perna: despedidas e morte, o que não deixa de ser uma despedida derradeira. E, definitivamente, não estava pronto para me despedir de um dos meus melhores amigos, principalmente quando ele havia passado mais de um ano sem me dirigir a palavra e corria o risco de partir acreditando que eu era um filho da puta. Acredito pra caramba em segundas chances, mas não em vida após a morte. Se a gente não se resolvesse aqui, acabou, e o fato de parecer que não haveria mesmo outra oportunidade me matava junto.

O outro golpe foi ver a Malu chegar ao hospital.

Eu não a deixaria sozinha. Não deixaria porque é a Malu. Não deixaria porque tudo o que eu queria era pegar seu sofrimento e guarda-lo comigo até que ele terminasse e, como não podia fazê-lo, eu seguraria a sua mão até o fim, qualquer que ele fosse. Não deixaria porque Saint-Malo nos uniu, uniu nós três, e não há nenhum encanto tão poderoso que possa nos quebrar. Não deixaria porque me lembrei do meu pai. Ele passou dois dias internado até ter o segundo ataque cardíaco que deu cabo da sua vida, e eu passei todo aquele tempo ao lado da sua cama, lendo sua coletânea de poemas do Pushkin, um livro com capa de couro gasta e páginas soltas. Não entrou ninguém pela porta para visita-lo. Quando ele morreu, não havia uma única pessoa para quem eu pudesse ligar para avisar. No seu enterro, estávamos eu, Tom, Kate, Vince, Rê, Singe e Mick, os seis, obviamente, lá por minha causa. Recebi um cartão da diretora da escola onde meu pai trabalhou por quase vinte anos, um cartão formal, cheio de palavras padronizadas e zero sentimento, enviado por protocolo e não por pesar ou sequer solidariedade.

Meu pai, sim, era um cara sozinho. E eu iria até o inferno e voltaria um milhão de vezes para ter certeza que nem Tom e nem Malu jamais chegariam nem perto dessa solidão.

E, finalmente, não deixaria a Malu sozinha porque ela me quebra as pernas. Porque a ideia que ela não estivesse dormindo me enlouquecia, porque o fato de ela não comer me matava, porque a mulher mais maternal do mundo não compreender que tinha três moleques assustados pra caramba e precisando dela me fez me dar conta mais uma vez que eu estava diante de uma força contra a qual não podia lutar. E, se não podia lutar contra ela, lutaria por ela. Se é o Tom que você quer, então você terá o Tom. E se você não dorme enquanto isso não acontece, não dormirei com você. Não comerei com você. Farei dessa sala de espera a minha casa também, para me assegurar que no final será feita a sua vontade.

Só, por favor, não solte a minha mão.


O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora