39. À mercê

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Ás 2:30 am, escutei o carro estacionar lá fora. Esperei sentado na escada, meus pensamentos ainda turbilhoavam.
Robert foi o primeiro a entrar, depois os outros entraram atrás.
- Voltou cedo, James - comentou ele.
Não respondi, e continuei a olhá-lo com carranca. Ele parou, tentando entender porque eu o olhava assim.
- Quando pretendia me contar? - perguntei ao me levantar.
- Sobre...?
- Eu cacei dois muskox hoje! Dois! E essas drogas de olhos vermelhos voltaram no meio da festa!
- James...
- Não venha me dizer que eu preciso caçar três, quatro, ou mais! Não vai adiantar! - Roy, Ben e Liz continuavam parados no hall, assustados com o modo como eu falava. E Robert escutava calado. - Você sabia, não sabia? Desde o ínicio, você já sabia. Desde a primeira vez em que meus olhos mudaram de cor sem mais nem menos, e eu estava enganado quando achava que estava escondendo de você a forma como eu estava escutando pensamentos alheios. Por que tudo isso faz parte do processo, não é?
Liz puxou Ben e cutucou Roy para que os seguisse para fora da casa. Então ficou somente eu e Robert na sala.
- Como soube dessas coisas?
- Não importa, por que agora eu sei!
- James, eu estava tentando encontrar uma maneira de reverter a situação...
- Eu não sou um experimento! - vociferei. - Eu só quero entender por que esconde as coisas de mim! Seria muito mais fácil se me contasse; poderíamos encontrar uma maneira juntos. Eu confio em você mais do que em qualquer outra pessoa; você é o mais próximo de um pai do que alguém um dia já chegou a ser pra mim..
Ele olhou pra baixo, decepcionado consigo mesmo.
- Vou encontrar uma saída, James...
- Não existe saída... A quem está querendo enganar?
- Tiramos Roy das Centoph, se lembra disso? Você pode não ter tanta noção, mas há anos atrás eu estava desenganado com você, achei que não pudesse viver como nós, e aqui estamos, você é um de nós, James! Não é agora que vai deixar de ser.
- Sim, eu lembro, meu pai. Lembro que quase me despachou para outro país com outra Scarly - acusei.
- Mas não o fiz, fiz? Por que queria, de todo o meu coração, que continuasse sendo um de nós.
- Sou um Scarly! Por mais que não me tratem como um, todos vocês tem ciência disso e se lembram imediatamente quando eu aumento meu tom de voz, mesmo quando não tem nada a ver. Eu cheguei um dia a esquecer, sabe? Mas agora meus olhos fazem questão de me lembrar toda vez que me olho no espelho.
- James, confie em mim.
- Eu confio! Sei que vai tentar dar o seu jeito, mas não vai... Não acredito que consiga, desculpe.
- Quando menos esperar, vai ver que consegui.

Dois dias depois, Jenny voltou da Flórida.
De manha, quando achei que não fosse tão cedo para fazer ligações, peguei meu celular e liguei para Jenny. Esperei várias chamadas e quando eu ia desistir ela atendeu.
- Alô? - Sua voz estava cansada; provavelmente ela estava dormindo.
- Jenny? Desculpe; te acordei?
- Não, não. Eu só estava cochilando.
- E aí? Como foi a chegada em casa? - tentei puxar assunto. Que pergunta inútil, não sabia o que falar.
- Foi... tranquilo.
- Hum...
Enquanto eu tentava pensar em algo, ela continuava muda do outro lado da linha. Talvez não estivesse afim de conversar, afinal, olhei para o relógio e ainda era 9:00 hrs, ou simplesmente tivesse caído no sono; até por que, ela havia passado a madrugada de domingo voltando de viagem e devia mesmo estar cansada.
- Desculpe, Jen. Eu ligo mais tarde - falei, por fim. Depois de ter pensado nesses detalhes.
- Não, James. Ainda estou aqui... Só esperando pra responder suas perguntas bobas. - Ela deu uma risadinha, e eu ri também.
- Estou com saudades - falei, despercebido. Só depois da resposta dela fui perceber o quão errado isso poderia ter sido.
- E eu estou morrendo! Vem em casa, meu pai não estará aqui.
- Não deve ser uma boa ideia.
- Por favor! Ele vai sair as duas da tarde e não vai voltar tão cedo.
Pensei por um momento. Eu queria, mas não devia.... Queria matar toda saudades daquela morena, era tão difícil recusar esse pedido...
- Posso considerar esse silencio como um sim?
- Não podemos correr esse risco, Jen...
- Acha mesmo que se houvesse algum risco eu te convidaria? Estamos a meses fazendo isso, eu não colocaria tudo a perder agora.
- Ok... Mas não posso ficar muito, está bem?
- Combinado.

Mesmo depois de ter caçado um urso no dia anterior, coloquei as lentes de contato, por precaução.
Faziam quinze dias em que eu não falava com Jenny; afinal, ligar poderia ser perigoso, então concordamos de só nos falar quando ela voltasse. Porém eu já estava acostumado em vê-la quase todos os dias, no lugar de sempre; ficar todo esse tempo sem vê-la e sem conversar, estava sendo difícil.
Eu queria contar que a Faculdade estava sendo legal, que conheci outra garota meio doida, e até queria contar que fui ao aniversário de D. e quase arrumei outra briga com o canalha do Alex, mas isso eu preferia guardar pra mim.
Sobre tudo, queria ouvir suas novidades também, bem como queria estar perto dela e me sentir um pouco normal.
Eu não havia mais conversado com Megan, talvez à noite a veria na Faculdade. Domingo não tinha sido nada empolgante, Liz havia tido outro pesadelo comigo morrendo, e isso só nos levava a pensar que seria por causa do maldito sangue.
Robert havia me alertado sobre isso mais tarde. Dizendo que o sangue humano poderia me ajudar nesse sentido, mas me prejudicaria de outra forma, talvez pior.

Segui até a casa de Jen, com um pouco de receio. Aquela casa me causava calafrios; ri comigo mesmo, eu estava com medo de quem nem ao menos estava lá.
- Oi - ela disse baixinho enquanto chegava mais perto pra me abraçar.
- Tudo bem com você, Jen? Está um pouco... abatida.
- Ainda estou um pouco gripada... Sabe como é, sair do Alaska pra ir para "Sunshine State" exige um pouco do seu organismo... O clima lá estava bem quente.
- Hum... Sei como é.
- Entre, James. Vai ficar parado ai fora? - Ela riu.
Entrei em sua casa e estava exatamente do mesmo jeito em que vi pela última vez. A poltrona no mesmo lugar, o tapete persa, os quadros na parede, que dessa vez em um deles reconheci o outro caçador, e por último, mas não menos importante, o rifle ao lado do armário. Dessa vez devia estar carregado.
Seguimos até o sofá, obviamente eu não estava confortável ali, mas tentei não demonstrar.
- Me desculpe por não atender ontem... Meu celular estava longe. - Na verdade estava em casa, enquanto eu corria pela floresta a procura de um animal grande.
- Liguei uma, duas vezes... na terceira eu desisti e fui dormir; estava exausta - ela deu de ombros. - Como foi na faculdade?
- Está sendo interessante. Conheci uma garota meio maluca...
- Hum... Garota?
Eu ri.
- Não está com ciumes, está?
- Ciumes? Eu? Não! Não estou com ciumes, James. Nem poderia né...
- Eu podia jurar... - provoquei. Ela revirou os olhos.
Percebi algo estranho em seu olhar, ela fitava um lugar qualquer, pensativa, parecia que só estava ali em corpo.
Não era possível que nossos assuntos tivessem acabado; havia algo errado, e eu não sabia o que era.
- Jen... O que há de errado com a gente?
- Não há nada errado.
- Não somos assim normalmente; não é assim que agimos quando estamos juntos, pelo menos não era assim antes...
- O problema deve estar em mim. - Ela deu um meio sorriso e se levantou, mas só estava querendo quebrar a tensão. - Quer beber algo? - perguntou seguindo para a cozinha.
Ignorei a pergunta, levantei e fui atrás dela.
- Por que você não me diz? Se algo te incomoda, por que não se abre comigo?
- É tolice minha.
Peguei suas mãos; era a maneira mais fácil de fazer com que ela prestasse mais atenção em minhas palavras.
- Você sabe que pode se abrir comigo, pode dizer o que quiser, mesmo que isso me magoe... Eu só não admito que isso te magoe.
Ela me olhou profundamente, e lá no fundo eu percebi que o modo como eu a tratava a deixava pior. Soltei suas mãos rapidamente, porém com delicadeza.
- Estou com medo... - admitiu, com os olhos baixos.
- Medo de quê?
- De perder você algum dia. - Ela olhava para mim com uma expressão amargurada.
- Não vai perder.
- Você não sabe - rebateu.
Não respondi; eu não tinha como argumentar. Tentei esperar que ela relaxasse, mas nada aconteceu.
- Desculpa por ter deixado isso crescer - sussurrei.
- Nós? - perguntou.
- Sim.
- Obrigada por ter deixado isso crescer. - Ela sorriu de canto.
Revirei os olhos. Já era tarde demais para consertar. Como se ela me deixasse consertar... Como se eu quisesse consertar.
Como sempre, o silencio se instalou em nosso meio, como se de repente estivesse vindo nos espionar.
Ela roçou levemente as costas de minha mão esquerda com a ponta dos dedos, como se estivesse apreciando a minha pele gélida.
Quando voltei a olhar pra ela, vi que ela me fitava, de repente suas bochechas coraram. Sem perceber, eu já estava parado em seu olhar.

Entre Nossas DiferençasOnde histórias criam vida. Descubra agora