(2001) Alex: O melhor emprego do mundo

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Para quem ainda não chegou a dezembro de 2001, esse POV pode conter spoilers

Queria não precisar ser discreta pra poder mandar um e-mail pro Omar falando que esse é o dinheiro mais fácil que já ganhei na vida, mais fácil até que o seguro desemprego, porque não faço nada, é um entre e sai de gente dramática o dia inteiro, a TV é muito melhor que a minha e a geladeira está sempre cheia. Só que às vezes eu fico meio perdida e entediada, é que eu tenho esse problema de me perder com frequência, e o tédio acontece quando sou contratada para organizar os compromissos de uma mulher de marido lindo nem um pouco comprometida. Aí estava zanzando para fingir que estava me ocupando com alguma coisa enquanto esperava a cozinha ficar vazia para dar uma olhada no que tinha na geladeira quando dei uma trombada na criança mais velha, o Victor.

-Tá de bobeira? - Ele perguntou.

-Tô fingindo que não tô, mas tô.

-Então vem cá no meu quarto - ele chamou.

-Ah, não, tenho vários problemas, mas não tenho problema de pedofilia.

O Victor deu uma gargalhada, o que foi esquisito porque o assunto é sério e não tem a menor graça, e disse que na verdade era pra jogar videogame, que eu tinha que dar cobertura pra ele numa fase em um galpão que era muito mais fácil jogar com duas pessoas que jogar sozinho.

-Oba! O que eu faço?

-Atira. Só não atira em mim.

-Eu posso fazer isso!

Muito mais fácil que aprender Excel!

O melhor de tudo é que a gente foi pro sótão, que era o único canto da casa que eu não conhecia, porque eu zanzo tanto por aqui que já até consegui fazer um xixi no banheiro da Malu para ver como era. Foi um xixi bem normal, mas o armário do banheiro é cheio de hidratantes de todos os cheiros e todas as funções, o que seria perfeito pra minha pele ressecada, mas quando cliquei e fiquei honesta, também deixei de ser ladra. Subi com o Victor pela escadinha e era o maior quarto com a maior bagunça que já vi na vida. Perguntei a ele se podia tirar uma foto, mas pra ele não se preocupar, porque eu sou discreta.

-Por que você quer uma foto do meu quarto?

-Pra mostrar pra minha avó. Ela sempre disse que queria uma foto da minha cabeça, e acho que seu quarto a representa direitinho.

-Hahaha você mora com a sua avó?

Não entendi se a graça era a foto, a minha cabeça ou a minha avó, pois os três assuntos são sérios.

-Moro.

-Por que?

-Por que eu não moraria?

-Sei lá, nunca ouvi falar de alguém que morasse com a avó. Ainda mais uma adulta.

-Eu e minha avó somos carentes e co-dependentes e não temos onde cair mortas, então caímos no colo uma da outra. Sua mãe não me paga lá essas coisas, sabe? Tá que ela ainda não me pagou nada, mas pelo que ela disse não vai ser lá grandes coisas, tipo, é melhor que o seguro desemprego, mas eu compenso com a comida de graça que ando pegando na geladeira.

-É, a minha mãe é bem pão dura - Victor falou, e na mesma hora eu senti essa vibração, sabe? Eu sou muito paranormal, o que não é um problema, aliás até ajuda quando não me mata de medo, e teve aquela vez que procurei um exorcista, e...

Espera.

Não estava falando do exorcista.

Ah, sim, senti uma vibração bizarra de crise e tragédia, e ando em uma fase dramática, e resolvi descobrir o que era, pois o Victor é gente boa e me chama pra jogar videogame e tem uma mãe pão dura, então me senti solidária apesar de nunca ter passado por nada disso. Se bem que eu sou gente boa, mesmo que as mulheres queiram me dar na cara, mas a Malu ainda não me acertou, então acho que estou melhorando.

-Você tem um problema com a pão durice da sua mãe? Ela atrasa o seu salário? Ai, meu Deus, ela não pode atrasar o meu salário, eu pago o aluguel, eu compro comida quando não tiro daqui, eu tenho que botar gasolina no carro, eu tenho que dar dinheiro para a minha avó jogar bingo, eu...

Precisei de ar e o Victor riu:

-Eu não recebo salário! E ela nunca atrasou a minha mesada, então acho que vai te pagar direitinho. A gente tá é brigando porque ela não quer pagar para eu visitar o meu pai.

-Seu pai não é o marido lindo?

-Hã?

-O marido lindo da sua mãe?

-Ah, não, meu outro pai. Tenho dois. Minha mãe foi casada com um francês que me criou. É um dos meus pais. Aí depois ela se separou dele para casar com meu pai biológico, que deve ser esse marido lindo.

Cara, com aquela puta cara de santa e pão dura desse jeito, a mulher sai pegando maridos e dando pais múltiplos pros filhos em vários países! Achei incrível! Acho que vou trabalhar meu problema de cara de vadia para conseguir maridos lindos múltiplos também.

-Deve ser muito bom ter dois pais! Como é?

-É maneiro. Na maioria do tempo. É um pai pra cada coisa. Meu pai Tom conversa comigo sobre as meninas, joga bola e videogame e dá uma segurada quando a mamãe pira nas regras. Meu pai Jean-Claude me leva para passear, pergunta da escola e fala do futuro.

-Futuro? Tipo vidente?

-Não, tipo o que eu vou querer ser quando crescer, essas coisas. Às vezes parece que meu pai Tom é mais meu irmão que meu pai, e meu pai Jean-Claude é só pai. É complicado porque eles não se gostam, aí eu tenho que tomar cuidado pra não falar de um na frente do outro. A mamãe sempre me ajudou com os dois, aí agora ela tá chata pra cacete e não quer que eu veja meu pai Jean-Claude.

-Pensei que o problema dela fosse ser pão dura.

-Mas tipo, a mamãe é rica, cara! O meu pai Jean-Claude é pobre! Qual o problema dela?

-Sei lá, não tenho pai nem mãe e não conheço a Malu direito, embora ela deva ser bacana porque ainda não deu na minha cara, e sinceramente, ela pode me pagar pouco, mas ainda assim paga, e pra eu não fazer nada e ficar no sótão conversando sobre pais. Mas a minha avó tem problema de caroço de azeitona. Ela só compra azeitona sem caroço. Aí um dia eu fiquei puta porque fala sério, não posso ser discriminada por só comer azeitona sem caroço, aí comprei um vidro de azeitona com caroço e adivinha só! Entalei com o caroço.

-Hã? - Victor falou. Puta que pariu, eu sou muito à frente da humanidade. As pessoas nunca me entendem a não ser que eu mastigue tudo.

-As pessoas que cuidam da gente têm razões que a gente desconhece e só não querem que a gente entale.

Não sei por que não ganho a vida com psicologia.

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Esse POV faz parte da Semana da Alex, que acontece de 2 a 7 de novembro no grupo Realidades Paralelas da Mari

O Lado Escuro da LuaOnde histórias criam vida. Descubra agora