O rei sobrevoou vastas terras que sequer supunha existir. Além das verdejantes terras élficas havia um vasto deserto de areias claras, rochas arredondadas ou cilíndricas, esculpidas pelo tempo. Havia também montanhas pontiagudas e finalmente as planícies verdes e desabitadas do segundo continente. A travessia do deserto foi difícil para ele e sua montaria. Houve pouca caça e pouca água. Por pouco não pereceram. Suas vidas foram poupadas, pois encontraram estranhas frutas rasteiras que nasciam nas proximidades do mar. Eram grandes como abóboras, mas doces e cheias de água. Seu interior era de um intenso amarelo e era repleta de pequenas sementes escuras. Öfinnel chamou-as de doce-salvação. A tan'ala era carnívora, mas entre a morte e as "doce-salvações" ela aprendeu a comer das frutas. A montaria quebrava as grossas cascas com suas poderosas mandíbulas. Öfinnel, por sua vez, rachava-as com seu machado.
Após o imenso deserto renovaram as energias nos riachos das planícies verdejantes e livres de civilização. Alias, a tan'ala pôde caçar à vontade, pois era abundante a vida selvagem daqueles prados. A etapa final e mais difícil seria cruzar os mares que separavam aqueles dois continentes.
Foi quando avistaram fumaça de uma grande queimada. Öfinnel quis se aproximar, mas o medo intenso que o inseto manifestava em relação à fumaça, ou fogo, tornaram-na praticamente incontrolável. A morte passou perto do monarca. Parte da bagagem se desprendeu e em dado momento ficou pendurado segurando uma das grossas e peludas pernas da criatura. Comandou seu pouso sentindo calafrios e desespero. O resultado foram algumas escoriações e contusões e um pouso nada memorável.
Ele foi investigar o incêndio à pé. Após passar de uma colina verdejante, que deu vista para as praias, foi tomado pela surpresa. Lá estavam centenas, ou mesmo milhares de pessoas. O que estariam fazendo ali? Havia muitos navios parados em uma grande enseada e uma vila em chamas, ou melhor, algo como um acampamento. Talvez aquelas pessoas não estivessem ali por mais de duas ou três semanas. Uma grande quantidade de flechas eram atiradas contra duas ou três criaturas aladas, escuras como carvão e de pele rachada. Seu interior parecia queimar e ao voar deixavam um rastro de fumaça, desenhando curvas pelo céu. A cada rasante executavam ataques nos quais expeliam jatos de chamas que engolfavam tendas, provocando mais e mais focos de incêndio.
Öfinnel apertou o passo seguindo para as proximidades do acampamento. Entre os que cruzavam seu caminho, reconheceu povos de diferentes tribos. Eram da região das planícies e pântanos onde lutou guerras no passado foi conhecido como um grande general. O chamavam de Barba de Leão, ou algo assim. Dizem que o próprio Öfinnel havia nomeado a região como Vale das Sete Tribos, em tempos remotos, mas atualmente ele não tinha recordação clara disto. Era sempre assim, suas memórias se confundiam depois do decorrer de dez ou vinte mil luas.
Apesar da queda recente, ele se sentia pronto para a batalha. Aqueles pobres coitados não teriam chance contra aqueles demônios não fossem um pequeno grupo de feiticeiros dos hölmos que participavam da luta. Raios e tufões acabaram por abater uma das bestas aladas. As flechas atiradas por arqueiros simplesmente queimavam quase imediatamente depois de atingir o alvo. A pele dos demônios era uma couraça negra com poucas aberturas, como rachaduras, que mostravam filetes de fogo vermelho ou branco.
Após ver um dos companheiros abatido, o monstro pousou próximo aos feiticeiros partindo para um ataque feroz. Fogo e fumaça dificultavam a visão e provocavam lágrimas nos olhos. O diabo tinha a altura de dois homens, peitoral colossal, mas perninhas finas e desproporcionais. Mesmo as tais pernas finas, ainda eram mais grossas e musculosas que as do rei. Suas garras longas fizeram picadinho de um dos feiticeiros, enquanto o outro usava sua magia para proteger-se dos ataques ferozes da besta. O rei correu para salvá-lo. Carregava um pesado machado de duas mãos sobre a cabeça. Enterrou-o no quadril da besta, justamente num ponto em que se formava uma articulação. O machado penetrou e a besta curvou-se emitindo um horrível urro. Os ouvidos de Öfinnel zuniram. Cruzou olhares com a besta e havia morte escrita nele. O rei sacou a espada que estava numa bainha amarrada às costas. A lâmina zuniu direto contra o pescoço musculoso da besta. Como algumas aves que continuam a caminhar após subtraída a cabeça, o monstro continuou a oferecer combate. O corte não foi suficiente para decepar-lhe a cabeça, deixando-a pendente de lado. O instinto da besta fez girar com força os longos braços e o rei foi atingido. O golpe o atirou rolando terreno abaixo em direção à praia. A espada voou para algum ponto distante. O monstro, mesmo quase sem cabeça, agora, apoiando-se em pernas e braços, arrastou-se cambaleante para Öfinnel.
O feiticeiro que o rei salvou atirou lanças de gelo contra o demônio, atrasando seu avanço. Öfinnel ficou de pé e conseguiu afastar a zonzeira e falta de ar. Tossindo muito tropeçou ao buscar a espada. Precisou pular no chão para escapar de um golpe da besta. Aproximou-se da espada. Lanças de gelo continuavam a atingir o demônio. Irritado, o ele retirou o machado do quadril e arremessou-o contra o feiticeiro.
O feiticeiro grunhiu ao ser atingido em cheio e rolou para trás. O rei se aproveitou daquele momento para atacar. Mirou a junta do que seria um segundo joelho em suas pernas finas, próximo da canela e dos pés. Enfim, conseguiu decepar-lhe algo! Sem um pé a besta perdeu equilíbrio favorecendo o próximo ataque. Tinha que ser o pescoço.
- Maldito! - rosnou Öfinnel ao golpear. A cabeça cortada pendeu para trás e uma língua de fogo desordenada projetou-se do pescoço. Öfinnel foi atingido e seu braço esquerdo sofreu queimaduras. O rei imaginou que com a cabeça pendurada atrás do tronco o monstro não poderia vê-lo. Mas o diabo não era feito de carne e osso e não tinha sangue. Chegou a duvidar que poderia derrotá-lo. Os demônios que enfrentou lado-a-lado com os elfos eram oponentes fracos, se comparados a este diabo de fogo. Com violência e todas suas energias, o rei acertou golpes um após o outro sem conseguir derrubá-lo. Um safanão da besta atingiu-o no ouvido e Öfinnel foi ao chão. Provou daquela areia grossa e quente das proximidades da praia.
Para sua sorte, outros guerreiros caíram sobre a besta com lanças, espadas e machados. Seu ouvido ainda zunia e sentia uma forte dor de cabeça. Sangue lhe escapava pela boca e narinas.
A batalha contra o demônio prosseguia enquanto Öfinnel se esforçava para ficar de pé. Um dos homens foi tomado pela perna e girou de um lado para o outro sendo batido contra o chão como se fosse um porrete. Depois de suficientes pancadas o monstro atirou o homem para o ar fazendo seu corpo torto de tantos ossos quebrados girar e girar caindo a uma longa distância. Neste instante, o rei pode perceber de fato a magnitude da força inumana daquele monstro. Uma trégua de ataques ocorreu. O demônio endireitou a cabeça pendente sobre o tronco. Fogo ardia e jorrava a partir do pescoço e seus olhos giravam desordenadamente. Era uma imagem aterradora: a criatura avançou com uma das mãos sustentando a cabeça sobre o pescoço.
Mais uma vez, era ele ou Öfinnel. Não havia ângulo para um golpe no pescoço de modo que o rei optou pelo pulso. Separou a mão do braço tirando a sustentação da cabeça, fazendo-a pender, desta vez para frente. Agora sim, um giro bem executado e... A cabeça foi ao chão! Faíscas intensas saíram cegando Öfinnel por alguns instantes. O diabo continuou a se mover e acertou um golpe de raspão fazendo o rei recurar. As asas bateram desajeitadas fazendo-o alçar pequeno vôo seguido de queda.
O rei deixou-se cair na areia, exausto. Se esforçou para ficar desperto. Havia grande confusão e a fumaça ainda piorava as coisas. Sentiu mãos em seu corpo e foi carregado por algumas pessoas. A luz e fumaça se foram. Foi levado para uma daquelas cabanas. E enquanto recuperava aos poucos a audição e a visão ouviu alguém dizer.
- Milagre! É mesmo o Rei! O Rei está de volta! Graças aos Deuses! Nossas preces foram ouvidas! Misericordiosa Ectarlissè! Nosso Rei vive! Nosso Rei vive!
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Öfinnel. Rei. Vidente. Guerreiro. Lenda.
FantasíaÖfinnel foi o último rei de Vellistrë antes que fosse destruída pelas hordas de demônios invasores. Determinado, forte e imortal. Está vivo há incontáveis gerações e sua memória vai se perdendo aos poucos. Fortes ondas do destino impelem suas açõe...