Por muito tempo eu pensei que nunca mais sentiria tanto calor. O meu corpo está tão quente, cada toque de brisa parece me rasgar, e esse cheiro - eu não quero mais sentir. Terra e folha, a minha cabeça vai explodir. Eu só quero dormir e eu me sinto tão só. Eu não quero adormecer sozinho. Quanto tempo ele vai levar pra voltar?
Quando eu acordei hoje, estava úmido no meu quarto, o frio do chão de pedra fazia cócegas nos meus calcanhares enquanto eu rodava ao som do tilintar das correntes; a melhor música que eu ouvia lá embaixo, e sempre achei que era tão bom quanto sentir o sol no rosto. Mas já fazia tanto tempo que eu não o sentia. Hoje estava tão aconchegante que eu acordei com vontade de dançar, e dancei por bastante tempo - poderia dizer que a manhã inteira, se eu soubesse quando é manhã.
Não lembro há quanto tempo eu estava lá, mas já faz tempo suficiente para eu esquecer quanto tempo faz. Desde que ele havia me acorrentado naquele porão. Além do mofo e da poeira no colchão quando eu me deitava, os únicos cheiros que eu sentia eram os meus cheiros, do meu corpo e de tudo o que saía dele, e isso era bom. Eu me conheço agora como nunca conheceria de outra forma. Era tão tranquilo lá embaixo.
Já faz muito tempo, mas eu me lembro das primeiras vezes. Sempre que as mãos dele seguravam meu pescoço e apertavam meu rosto contra o colchão enquanto ele saía e entrava da minha bunda como se fosse me partir ao meio. Quando ele me amarrava com os lençóis e mordia meu pau pra me fazer gritar. Eu era o pior tipo animal. Quando ele terminava, o meu corpo não era meu e tudo o que havia dentro dele queria sair. Eu poderia vomitar e chorar um dia inteiro antes de desmaiar, sentindo o sêmen escorrendo de dentro de mim, o sangue fedorento descendo pelas minhas pernas e cada marca que ele deixava. Eu poderia morrer só com a sensação que ficava depois de cada vez. Mas sempre foi inútil.
Mesmo que eu gritasse por dias, mesmo que eu chorasse e o meu corpo me recusasse ao ponto de se destruir, mesmo que eu quisesse morrer - eu nunca morri. Eu era tão bobo em discutir com o destino. Eu nunca havia saído de lá, ninguém pra me procurar, ele nunca iria parar. Nenhum lugar pro qual voltar, ninguém me esperando. E já faz tanto tempo!
Então eu aprendi a aceitar. Todas as vezes em que a luz se acendia debaixo da fresta da porta, que os passos se aproximavam e ele entrava, eu o aceitava, o meu corpo se abria, a minha mente o engolia e eu não morria mais; toda a raiva dele se afundava dentro de mim e era sanada pela minha alma, todo o meu corpo se regozijava com aquele calor insuportável me queimando.
Toda a atenção que ele me dava, cada minuto que perdia comigo, a comida que trazia, o quarto, o meu colchão, eu valorizava cada presente que ele havia me dado. Ninguém nunca havia me dado tanto.
Sempre estive sozinho, sempre estive na rua. Mas quando ele me encontrou dormindo sozinho no escuro, eu não estava mais só. Eu esperneei e gritei quando ele me levou de repente, mordi, ameacei. Mesmo assim ele não me deixou pra trás, ele não desistiu. No início eu não entendia a beleza daquilo, mas agora eu entendo.
E eu rastejo e imploro por mais, pra ser preenchido, pra que ele me dê todo o prazer que o meu corpo é capaz de sentir. Pra que ele deixe a minha cabeça em branco quando me tomar, e me lembre de como é correr na grama e sentir o sol e o cheiro do ar, que ele me foda com força suficiente pra eu não conseguir dançar quando acordar. Eu desejo que ele me faça gritar alto pra que eu não ouça o som das correntes batendo enquanto ele se enfia em mim e balança o meu corpo como se fosse me partir por dentro. É só o que me importa agora. É tudo o que me resta.
Ele me deu um lugar, me alimentou, me preencheu. Ficou comigo durante tanto tempo. Eu dormia com a certeza de que logo ele iria voltar, de que aquele era o único lugar onde eu poderia estar e fiz a minha casa naquele colchão.
Mas hoje ele trazia uma pá quando foi me ver - e me acertou com ela. Tão cliché. Eu não sei onde estou agora, nem como cheguei aqui, mas a minha cabeça dói e as minhas mãos estão grudentas.
Talvez ele tenha me descartado. Está tão frio.
Mas agora meus tornozelos estão leves e a falta do peso do metal faz eu me sentir tão só. Os ruídos das folhas, do vento e da minha respiração estão me nauseando. Mesmo que eu não consiga abrir os olhos, eu sei que é o sol lá em cima, eu sei que é grama debaixo das minhas mãos. E isso é tão cruel.
Eu gostaria de adormecer em casa, mas eu estou tão cansado. Agora ele me abandonou.
Ha...
O ar fresco entrando pelos meus narizes parece me cortar por dentro. Meus pés estão tão gelados e os meus lábios ardem enquanto se esticam.
Ha... ha, hahahaha!
Eu ainda sei rir, que dó de mim. Mas não há mais dor, nem na cabeça, nem nos pés, nem nas costas. Até a dor me abandonou. Triste... tão triste. Patético.
Tão só...
O meu riso deu lugar a um sorriso plácido e um calor confortável nos olhos que não conseguem se abrir pra ver o sol pela última vez. Eu ainda sei chorar.
E, sozinho, vou deixar a minha alma dançar e tranquilamente flutuar pra um sono que eu reconheço. Calmo, tão calmo.
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Estocolmo
Short Story''A nocividade da minha solidão está dando nós na minha cabeça e o meu corpo anseia pela atenção cruel do meu captor. Todas as vezes em que ele entra no quarto eu já não sei se o monstro é ele ou sou eu.'' Na história, o enredo e personagens são fic...