O filho maldito

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Havia algo maligno crescendo na barriga de Fátima.

Ela sentia. Mais do que isso, ela sabia.

A civilização – como diz o povo da cidade grande – ainda não chegara à pequena cidade de Baltazar, no interior de São Paulo. Lá nem sempre havia luz à noite – e todo mundo sabe que as coisas malditas preferem andar no escuro. Só gente muito rica possuía o luxo de uma televisão em casa. Internet? O que era isso? Coisa do demônio, só pode.

E o demônio gosta muito de cidadezinhas pequenas.

Toda a gravidez de Fátima foi horrível, desde o primeiro dia. Ela tinha enjoos a todo o momento, o que a forçava a estar sempre muito próxima da privada, como se ela fosse sua melhor amiga. O doutor disse que era melhor Fátima repousar: ficar deitada o máximo que pudesse. Trabalhar na plantação – nem pensar!

Seu pai por pouco não a expulsou de casa. Talvez só não o tivesse feito em memória da santa mãezinha de Fátima – que Deus a tenha! – que não permitiria que o marido colocasse a própria filha para fora de casa. Ou talvez seu pai a tivesse abrigado somente porque não quisesse ficar sozinho. Todos os seus irmãos morreram e a vida, que é tão ingrata, deixou apenas a filha mais nova para o velho homem. E Fátima, que não era casada, arrumara um filho. Um filho indigno.

Fátima jamais contara ao pai as circunstâncias que a fizeram engravidar. Tinha vergonha e, muito mais que isso, medo. Não contou que fora estuprada no meio da noite por um homem de pele vermelha e... Deus pai!... chifres. Ainda tentava se convencer que aquilo fora fruto da sua imaginação, coisa do susto que levou; talvez ela tivesse criado essa imagem na cabeça para aliviar a dor que sentiu. Porém, toda vez que se lembrava daquela cena em seus pesadelos, Fátima via muito bem o rosto daquela... criatura. E sabia que o filho que esperava seria como o pai.

Certa noite, ela teve certeza disso.

Seu pai não estava em casa. Fora beber no bar, como sempre fazia. Fátima começou a sentir as dores durante a madrugada. Levantou-se, praticamente se arrastando, e tentou gritar por ajuda. Ninguém veio. Ninguém via com bons olhos a filha do fazendeiro que engravidara de um homem misterioso e fora de um casamento.

Fátima, sentindo as contrações horríveis na barriga, foi ter novamente com sua boa amiga – a privada. O enjoo estava insuportável novamente e ela botou para fora todo o jantar, o almoço e o que mais estivesse dentro do estômago. Só que a coisa não parava e a menina colocou também a bile para fora e outra coisa, que no começo não identificou na noite escura, mas depois de um tempo percebeu que era sangue.

Ela estava vomitando sangue.

Sentiu também a calcinha molhada, o que logo evoluiu para a saia completamente encharcada. As contrações eram insanas e ela pensou que desmaiaria ali mesmo. Mais do que isso: achou que morreria tamanha sua dor.

E ouvia aquela risada latejando em seus ouvidos. A mesma do homem (ou seria da coisa que a atacou?). Sentou-se na privada, sentindo uma dor imensa na barriga, como se fosse ir ao banheiro, mas mil vezes pior. Fechou os olhos e gemeu. Quando os abriu, havia a silhueta de alguém na porta.

- Pai?!

Novamente a risada. Gélida e maligna. Fátima bateu a porta na cara daquilo e, antes de fazê-lo, teve certeza a sombra possuía chifres e um rabo.

Começou a rezar o Pai-Nosso febrilmente, mas já se sentia morta por dentro. Havia algo ali – algo maligno – e que estava prestes a sair.

Ela gritou, gritou como se estivesse no inferno quando as contrações explodiram em estrelas nos seus olhos. A dor, ah, a dor era infinita e inimaginável. E as risadas do outro lado da porta não cessavam.

Fátima fez muita força, o máximo que conseguiu, tanta que sentiu as unhas pressionando sua carne e as mãos sangrando, manchando o piso branco de vermelho. Ela gritou, mais alto do que a risada, tentando tirar aquela dor de dentro dela – qualquer coisa para fazer aquilo simplesmente ir embora - até que o alívio veio seguido do silêncio.

Trêmula, Fátima saiu de cima da privada, arrastando-se pelo chão manchado de sangue, as lágrimas que vertera pela dor escorrendo por sua face suja e cansada, confundindo-se com o sangue. Não havia choro, mas ela sabia – sabia que aquilo acabara de deixar seu ventre.

Arrastou-se de joelhos pelo piso, lentamente, a curiosidade sobrepondo-se ao medo. Porém o grito que deu ao ver aquela cena foi muito mais alto que o grito de dor de minutos atrás.

Havia um menino lá dentro, um bebê. Era a criança mais horrível, mais desprezível, que a moça já vira em toda a sua vida – que qualquer pessoa vira. Sua pele era vermelha como o sangue, seus olhos eram injetados e negros e do alto da sua cabeça saíam pequenos, mas visíveis e inconfundíveis, chifres.

Como os do pai, que ria, ria sem parar do outro lado da porta.

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